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Guerrilha do Araguaia faz 50 anos e País ainda cobra respostas do Exército; leia análise

O tempo trouxe mais dúvidas que respostas sobre a execução de dezenas de integrantes do movimento armado na floresta amazônica

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Foto do author Leonencio Nossa

BRASÍLIA - Nesta terça-feira, a Guerrilha do Araguaia completa 50 anos. O tempo trouxe mais dúvidas que respostas sobre a execução de dezenas de integrantes do movimento armado na floresta amazônica. Esta história chegou à fase em que mães e pais das vítimas morreram ou não têm mais condições físicas de exigir os corpos dos filhos nunca devolvidos pelas Forças Armadas. 

A 12 de abril de 1972, o Exército deflagrava no sudeste do Pará a primeira de três operações para sufocar o movimento armado do PCdoB, composto por cerca de 100 guerrilheiros, a maioria deles universitários das grandes cidades. Naquele dia, Geraldo, codinome do estudante cearense José Genoino, era preso numa trilha por militares que estavam na região desde o começo daquele mês. Os primeiros presos enfrentaram o inferno da tortura; os capturados da fase final não saíram vivos da selva, mesmo sem oferecer risco algum aos carcereiros.

Moradores do Araguaia cercados por militares em 1972. Arquivo do ex-tenente Guilherme Xavier Neto Foto: Reprodução: Leonencio Nossa/Estadão

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Certa vez, ouvi um filho de um oficial do Exército que se destacou no Araguaia perguntar ao pai: “Por que vocês não botaram aqueles meninos de 20 poucos anos num ônibus e mandaram para casa?”, perguntou. O oficial não deu uma resposta imediata.

Mães morreram sem saber o que ocorreu na mata. Uma delas, moradora de Petrópolis, no Rio, recebeu um aviso de que alguém lhe daria informações sobre a filha guerrilheira num ponto de ônibus da Praia do Flamengo, sempre na tarde de um dia específico da semana. Por anos, ela desceu a serra para, no dia estipulado, encontrar o informante que jamais apareceu.

Pela força dos personagens e pela experiência trágica e ousada dos guerrilheiros, o Araguaia até pouco tempo despertava muito interesse da opinião pública. A decisão das Forças Armadas em não informar sobre o destino dos corpos dos mortos nos quartéis improvisados da selva tornou a guerrilha um capítulo em aberto da história e um debate sempre vivo.

A partir da democratização, o País conheceu testemunhos e documentos que ajudaram a entender uma história que os militares procuraram esconder desde seu início. Ainda em 1972, o Estadão divulgou pela primeira vez que havia um conflito no Araguaia. Ainda assim, o Exército manteve a versão de que era apenas uma manobra. Com o fim da ditadura, Cristina, Raul, Arildo, Áurea, Dr. Juca, Luiz Renê, Simão, Paulo Roberto, Jaime, Valdir, Dina, Osvaldo e outros não voltaram. Nos anos 1990, o Estado brasileiro reconheceu que eles tinham sido mortos. Os militares, então, disseram que as mortes ocorreram em combate.

Em 2009, o Estadão divulgou documentos do arquivo de Sebastião Rodrigues de Moura, o Major Curió, que revelaram que 41 guerrilheiros tinham sido aprisionados na Casa Azul, o QG do Exército em Marabá, e depois executados. A versão dos combates estava desmontada.

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Não se pode atribuir a Jair Bolsonaro, um ex-capitão do Exército de uma geração pós-guerrilha, o esforço para tirar o Araguaia do foco do debate. Afinal, Bolsonaro sempre usou a tribuna da Câmara em seu tempo de deputado para falar da guerrilha - os discursos eram baseados em testemunhos falsos de militares da reserva.

Na eleição de 2018, falar de Araguaia já se tornara mais difícil para famílias e pesquisadores. As demandas sociais de todas as ordens se avolumavam e a Nova República vivia seu momento decisivo. Os militares voltavam à cena política. No processo eleitoral, os jornalistas que levantaram o tema dos crimes praticados pela ditadura foram desqualificados - as pessoas não querem saber de tortura e assassinato do passado, afirmavam setores da opinião pública.

Mapa da região onde ocorreu a Guerrilha do Araguaia, no sudeste do Pará, elaborado pelo Exército nos anos 1970. Arquivo do Major Curió Foto: Reprodução: Dida Sampaio/Estadão

Para muitos influenciadores, questionar o papel dos militares na história era uma preocupação de um “nicho”, que favorecia a campanha de Bolsonaro. Foram os mesmos que demonstrariam surpresa com os arroubos autoritários do presidente eleito e uma política de governo de desdém da ciência ao longo da pandemia que matou mais que a soma de todas as guerras no Brasil.

A violência desenfreada num país que registrou no ano passado 41 mil homicídios talvez seja um fator que dificulta o debate sobre o Araguaia. No município de Marabá, epicentro da repressão à guerrilha, em três meses morrem mais jovens assassinados que o total de guerrilheiros mortos entre 1972 e 1974, período que durou o confronto.

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Quem faz pesquisa no Araguaia sempre é questionado sobre o motivo de mergulhar numa história aparentemente isolada. É estranho para muitos a insistência de alguém por um caso que, do ponto de vista frio dos números, não difere das temporadas de chacinas nos morros e periferias cada vez mais comuns mesmo nas metrópoles da Amazônia. A propósito, se no Brasil houve alguma queda em 2021 no número de homicídios, na Região Norte o que se registrou foi um aumento de 10%.

Num aparente paradoxo, a discussão sobre o Araguaia, um embate do tempo de um mundo dividido pela Guerra Fria, parece não se acomodar hoje nem mesmo no ambiente polarizado e quase sempre raso das redes sociais. É um tema complexo, que vai além das polêmicas que nascem pela manhã e acabam à tarde. Talvez seja um assunto que extrapola os limites dos campos ideológicos. Vale lembrar que, depois do Araguaia, ex-guerrilheiros sobreviventes continuaram alvo da extrema direita, que via o inimigo sem armas como inimigo. Também foram criticados pela extrema esquerda por pedirem uma reavaliação da conduta do partido. Na terra arrasada do pós-ditadura, ousaram defender o diálogo.

Há alguns motivos que tornam a história do Araguaia singular. O primeiro deles é que trata-se da última repressão do Estado a movimentos insurgentes com a prática do corte de cabeça. Em plena era da TV em cores, o País viveu um refluxo do tempo, repetindo barbáries do século 19, como os dias finais da Guerra do Paraguai, a Revolução Federalista e o massacre de Canudos. O segundo motivo é que o Araguaia envolveu uma geração de oficiais numa guerra não convencional e sua repressão foi organizada a partir do Palácio do Planalto. Outro motivo é a decisão das Forças Armadas de não entregar os corpos às famílias, uma situação incomum mesmo nos casos dos mortos do tráfico de drogas e da violência urbana.

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Essa postura da cúpula militar de impedir que as famílias enterrem seus mortos e, assim, encerrem o ciclo da vida revela lacunas não apenas na história do Araguaia. Há muitas perguntas sem respostas sobre o Estado Brasileiro, que costuma estar na linha de frente da matança - a repressão à guerrilha é um caso único, pois a sua cadeia de comando ficava simplesmente dentro da Presidência da República.

A história do movimento armado e seus vazios podem explicar um país onde se mata demais, a violência se banalizou e parcela significativa da população pode ser atraída pelo discurso da morte. Talvez, por isso, falar da guerrilha parece ter perdido o sentido.

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