Há muito jogo pela frente nestas eleições; leia artigo de Luciano Huck

Uma frente programática contra a fome e para gerar oportunidades precisa surgir da energia de nossa indignação

PUBLICIDADE

Por Luciano Huck
Atualização:

Era uma terça-feira aparentemente comum quando a bala perdida atravessou a janela da casa e matou a cabeleireira Gabrielle, moradora da comunidade da Chatuba, na cidade de Mesquita, Baixada Fluminense. Com 180 mil moradores, Mesquita tem dois dados reveladores: uma das maiores taxas de mortes por intervenção policial e uma das menores coberturas de serviço de esgoto do Rio de Janeiro.

O empresário e apresentador Luciano Huck convidou um grupo multidisciplinar para elaborar 22 propostas em áreas como educação, ambiente e seguridade social  Foto: Gabriela Biló/Estadão

PUBLICIDADE

É nessa mesma comunidade que mora em uma casa simples a Dona Zilda. Aos 62 anos, ela sustenta a família com a renda proveniente da coleta de recicláveis, somada aos bicos como pedreiro que vez ou outra pintam para o seu filho Carlos. Eu visitei a Dona Zilda no mês passado, atrás da história de uma bailarina.

A bailarina, Camila Moreira, de 16 anos, é neta da Dona Zilda e estudante da Escola de Dança do Theatro Municipal do Rio. Ela deu seus primeiros passos no balé aos 7 anos, em um projeto da ONG Instituto Novo Mundo, que a duras penas sobrevive na Chatuba. Quando a conheci, ela tinha um sonho e um problema. O sonho: conhecer Ingrid Silva, bailarina brasileira, negra como ela, que hoje integra o prestigioso Dance Theatre of Harlem, de Nova York. O problema: não ter dinheiro nem sequer para ir de ônibus diariamente para as aulas e os ensaios no Theatro Municipal. Os detalhes desta história convido você a conhecer numa das próximas edições do Domingão, se juntando aos mais de 40 milhões de brasileiros que me dão a honra da companhia toda semana na TV Globo.

A casa da jovem bailarina é típica dos recortes periféricos dos grandes centros urbanos. Muita gente, pouco espaço. Reboco por fazer, móveis simples e cortinas onde faltam portas aos batentes. Mas um detalhe chama a atenção: a cozinha, linda, com pisos e paredes recém-revestidos com cerâmica, uma reluzente bancada de inox, um fogão de seis bocas novinho em folha e uma imponente geladeira de duas portas. Dona Zilda, orgulhosa, dispara que tudo aquilo foi proporcionado pelo auxílio emergencial que amparou a família ao longo da pandemia.

Mas o voo foi de galinha. Quando tudo parecia melhorar, o dragão da inflação sobrevoou a Chatuba, o desemprego bateu à porta e a renda extra do Estado minguou. Resultado: a geladeira da Dona Zilda ficou vazia, e o fogão, sem gás.

Publicidade

DEBATE

O privilégio de poder, por meio do meu trabalho, rodar o País todo, ser recebido na casa das pessoas, ouvi-las com atenção e me conectar às forças e às carências das famílias é o que me fez entrar no debate público. E no debate público pretendo permanecer, firme, até o dia em que a loteria do CEP – ou seja, o lugar onde a pessoa nasce e vive – não determine mais as oportunidades que os jovens terão ao longo da vida.

A crise atual é cruel sobretudo com as mulheres, como a Dona Zilda, e com os mais jovens, como a Camila. Metade das brasileiras não teve dinheiro para alimentar a si mesma ou a sua família nos últimos 12 meses. E temos hoje fora da escola mais de 2,7 milhões de jovens de 15 a 21 anos que não completaram a educação básica, uma catástrofe depois de dois anos letivos inteiros perdidos durante a pandemia.

Cerca de 65 milhões de brasileiros hoje estão inadimplentes. Um terço dos que não têm emprego está assim há mais de dois anos. A inflação de dois dígitos compromete décadas de esforço para domá-la e corrói o poder de compra dos salários. A renda média do trabalhador é atualmente a menor desde 2012.

O bairro favelizado de Paraisópolis, na zona sul da cidade de São Paulo. Huck diz que pretende permanecer no debate público 'até o dia em que a loteria do CEP não determine mais as oportunidades que os jovens terão ao longo da vida' Foto: Leo Souz/Estadão

Quando Dona Zilda vai poder encher a geladeira? Ter gás para cozinhar? Sentar-se na sala sem o risco de ser alvejada por uma bala perdida? Ver o filho empregado? Ir à padaria em segurança? Saber que a escola das netas tem qualidade, que a descarga não despeja resíduos no córrego do lado de casa, que da torneira sai água tratada?

É na política que se enfrentam esses problemas reais e se acende a chama da esperança. Só o Estado tem o poder da transformação social exponencial de que tanto precisamos. Daí a importância de ocupar a arena política com novas lideranças, criativas, com iniciativa e capacidade de realização. E daí, também, a importância deste ciclo eleitoral.

Publicidade

Aos que teimam em dar as eleições como liquidadas, sugiro dar uma olhada no que aconteceu na Colômbia.”

Luciano Huck, empresário e apresentador de TV

Certamente teremos uma campanha presidencial dura e truculenta. Seja porque caminhamos para o 2 de outubro com os dois principais candidatos ostentando índices recordes de rejeição, seja porque um terço dos que hoje manifestam ter candidato admite a possibilidade de mudar sua preferência até o dia da votação. Ou seja: há muito jogo pela frente.

Aos que teimam em dar as eleições como liquidadas, sugiro dar uma olhada no que aconteceu na Colômbia, no domingo passado. Uma arrancada de última hora mudou a configuração e colocou no segundo turno o ultradireitista Rodolfo Hernández. Assim como na série de sucesso Stranger Things, o “mundo invertido” segue assombrando o nosso dia a dia...

Por isso prevejo uma eleição muito apertada. Isso dá grande relevância a todas as candidaturas já postas. O capital eleitoral acumulado por elas no primeiro turno será decisivo nos apoios no segundo turno. E, desta vez, esperamos que tais apoios não sejam negociados em torno de cargos, ideologias retrógradas ou quinhões do orçamento secreto, mas em torno de ideias e compromissos.

PAUTA

Vamos precisar de adultos na sala que falem baixo e sejam ouvidos, para não deixar o País se perder na baixaria das agressões e fake news. O antídoto para populistas, negacionistas e fanfarrões é uma pauta que fale com o povo, que se conecte com a rua, que desperte nas pessoas a certeza de que a vida pode melhorar. Está mais do que na hora de fazer isso. A quatro meses da eleição, porém, lamentavelmente, ninguém ainda puxou uma discussão séria sobre a fome.

Presidente Jair Bolsonaro canta o hino em evento no Paraná, na última sexta-feira. Luciano Huck avalia que 'caminhamos para o 2 de outubro com os dois principais candidatos ostentando índices recordes de rejeição'. Segundo o Datafolha de maio, Bolsonaro tem 54% de rejeição e Lula 33%. Foto: Isac Nóbrega/PR

Há anos venho fomentando a formação de novas lideranças e juntando brasileiros dispostos a pensar e repensar o País. Pessoas com trajetórias notáveis e diversas, de campos de atuação distintos. Um grupo multifacetado e multidisciplinar, com gente de todos os espectros políticos e das mais diversas áreas – educadores, lideranças sociais, juristas, médicos, ambientalistas e economistas – com um traço em comum: o firme desejo de fazer do Brasil um país mais justo, eficiente e afetivo.

Publicidade

Meses atrás esse grupo se reuniu com o objetivo de reiterar o compromisso com a democracia e com a recomposição de instituições de Estado lamentavelmente degradadas nos últimos anos. Mas não ficamos nisso. O grave momento no Brasil exige mais da sociedade civil. É necessário propor uma solução que não seja apenas a negação do que existe ou do que existiu. O campo democrático deve reagir e apresentar ideias próprias, originais e concretas para o País. Algo transformador precisa surgir da eletricidade de nossa indignação.

Ex-presidente Lula discursa em evento em Ponto Alegre, na quarta-feira; hoje o petista é o principal adversário de Bolsonaro. Para Huck, 'teremos uma campanha presidencial dura e truculenta'  Foto: Diego Vara/Reuters


Da nossa reunião surgiram 22 sugestões para 2022 nas áreas de educação, meio ambiente, seguridade social e governo. (Saúde, habitação e segurança pública devem merecer outro fórum oportunamente.) Todas as propostas estão alinhadas a uma agenda de inclusão social, economia sustentável, transparência e melhoria dos serviços públicos. Estamos dispostos a abrir diálogo a fim de consolidar o quanto antes essa frente programática potente e inspiradora.

Nas condições atuais, uma família pobre demora em média nove gerações para ascender à classe média no Brasil. Se quisermos acabar com essa imobilidade social, se quisermos de fato que os milhões de Donas Zildas, Camilas e suas famílias recuperem o direito de sonhar, nós precisamos de um projeto moderno de país com começo, meio e fim, com arquitetura, engenharia e execução. Dá pra fazer.

Confira 22 propostas de Luciano Huck para 2022.


Publicidade

*APRESENTADOR DE TV E EMPRESÁRIO

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.