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IA nas eleições para atacar adversários já é realidade, e Justiça tenta padronizar decisões

TSE tem incentivado juízes a consultarem um repositório que reúne todos os casos julgados sobre o tema

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Foto do author Bianca Gomes
Foto do author Zeca  Ferreira

Embora o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tenha regulamentado o uso de Inteligência Artificial (IA) nas eleições por meio de uma resolução aprovada este ano, a subjetividade do tema, a falta de precedentes e as dificuldades técnicas para identificar o que foi ou não criado por IA representam desafios significativos para a primeira eleição com uso massivo dessa tecnologia, segundo especialistas ouvidos pelo Estadão.

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Numa tentativa de garantir alguma uniformidade nas decisões, o TSE está incentivando que juízes de todo o País consultem um repositório da Corte que reúne todas as decisões relacionadas ao uso de IA no contexto eleitoral. Embora essa ferramenta tenha sido lançada em 2019, a Justiça Eleitoral aposta em seu aperfeiçoamento para consolidar uma jurisprudência sobre inteligência artificial.

O ministro do TSE Floriano de Azevedo Marques esclarece que o banco de dados da Corte já reúne as decisões sobre o enfrentamento à desinformação desde 2022. “Acessando o repositório para, diante de um caso que chegue a sua zona eleitoral, [o juiz vai] verificar o estado da arte da jurisprudência do Superior para ver se enquadra ao caso que tem pra julgar e assim evitando decisões muitos díspares”, conta o ministro sobre o funcionamento da ferramenta.

Prédio sede do Tribunal Superior Eleitoral. Foto: Dida Sampaio / Estadão

Entretanto, o assunto é tão complexo que algumas decisões já têm sido alvo de questionamentos por parte de especialistas. O caso mais emblemático envolve a deputada Tabata Amaral (SP), pré-candidata do PSB à Prefeitura de São Paulo. A parlamentar publicou um vídeo em suas redes sociais no qual o rosto do prefeito Ricardo Nunes (MDB), seu adversário na disputa, é inserido no corpo de Ryan Gosling, ator que interpreta o boneco Ken no filme Barbie. O vídeo faz um trocadilho com o pronome “quem” e o personagem “Ken”, sugerindo que o prefeito é desconhecido na cidade.

Na decisão, o juiz eleitoral do caso afirma que não se configurou o uso de IA na modalidade “deepfake” com “fins ilícitos”. Ele conclui que não houve “exposição vexatória” de Nunes que pudesse “macular suas honras objetiva ou subjetiva”. “Até porque a montagem é feita em sobreposição a um personagem bem aceito mundialmente, que não figura como um vilão, bandido ou uma figura desprovida de bons valores e caráter duvidoso”, diz o magistrado, acrescentando que não houve menção à eleição de 2024. A defesa de Nunes recorreu, mas a decisão foi mantida.

Fernando Neisser, professor de direito eleitoral da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo, entende que o caso de Tabata se encaixa no artigo 9-C da resolução 23.732/2024 do TSE, segundo o qual “é vedada a utilização, na propaganda eleitoral, qualquer que seja sua forma ou modalidade, de conteúdo fabricado ou manipulado para difundir fatos notoriamente inverídicos ou descontextualizados com potencial para causar danos ao equilíbrio do pleito ou à integridade do processo eleitoral”. “O vídeo [da Tabata], em tese, configura uma prática ilegal, pois ela usa a Inteligência Artificial para atacar o adversário”, afirma Neisser, que continua. “A preocupação do TSE é com o uso da ferramenta, que tem o potencial de ser uma desinformação com anabolizante.”

Como mostrou o Estadão, entre as principais preocupações da Justiça Eleitoral para este ano estão justamente as deepfakes. O ministro Marques já classificou a prática como uma espécie de “fake news 2.0″. Isso porque a tecnologia não só permite a produção de informações falsas com maior rapidez, como também trouxe um salto na qualidade dessas produções, tornando praticamente impossível ao olho humano detectar a manipulação realizada por um programa de computador. A despeito das preocupações da Corte, o uso da tecnologia se propaga País afora. Em Armação dos Búzios (RJ), a justiça eleitoral negou o pedido do prefeito Alexandre Martins (Republicanos) para remover um perfil no Instagram que fez cinco publicações sobre ele utilizando inteligência artificial. O juiz determinou apenas a remoção das postagens específicas. Na decisão, o magistrado argumentou que não houve propaganda considerada inverídica e que a suspensão do perfil poderia configurar censura, o que é vedado pelo ordenamento jurídico.

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Volgane Carvalho, analista judiciário do Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão (TRE-MA) e professor da PUC-PR, esclarece que tanto o uso de inteligência artificial sem aviso prévio quanto a disseminação de deepfakes são vedados, independentemente da veracidade do conteúdo.

“Não se pode, a título de preservar a liberdade de expressão e vedar a censura, autorizar o uso de tais instrumentos na propaganda ou com fins de propaganda. Nessas situações, cabe a determinação de retirada da mesma ou, no limite, até a exclusão do perfil”, afirma Carvalho, que vê razoabilidade na exclusão da conta. “Como o perfil não é identificado e já realizou várias postagens se utilizando dos meios vedados pela norma, não seria nada exagerada a ordem de exclusão do perfil e encontraria proteção, inclusive, nas resoluções do TSE.”

Em São Pedro da Aldeia (RJ), a cerca de 40 quilômetros de Búzios, a Justiça inicialmente decidiu não remover um perfil que divulgou um áudio imitando a voz do prefeito em uma conversa de teor sexual com seu chefe de gabinete. A decisão de não suspender a página no início busca também evitar a censura.

Floriano de Azevedo Marques Neto, ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), lidera os debates na Corte sobre a regulamentação do uso da Inteligência Artificial Foto: Divulgação/TSE

“Quando entramos com o processo, a juíza eleitoral deferiu a liminar apenas para remover o conteúdo. Como houve reiteração de publicações e postagens que visavam claramente influenciar o processo eleitoral, a magistrada emitiu uma nova decisão, determinando a suspensão temporária das páginas do veículo por 180 dias,” explica Pedro Canellas, advogado eleitoralista e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), que atua nos dois casos envolvendo as cidades da Região dos Lagos. No caso de São Pedro da Aldeia, não só houve abuso da liberdade de expressão, como também a utilização de uma ferramenta de IA para criar falsamente um diálogo entre o prefeito e seu chefe de gabinete que nunca existiu.”

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Em Santa Rita (PB), o pré-candidato do Republicanos à prefeitura, Nilvan Ferreira, enfrenta outro tipo de desafio: a morosidade. Há cerca de dois meses, ele acionou a Justiça Eleitoral para investigar um vídeo no qual sua voz, gerada a partir de inteligência artificial, supostamente faz elogios a um de seus adversários na eleição. A publicação foi feita em formato de stories no Instagram de opositores, ficando disponível por apenas 24 horas antes de desaparecer. Até o momento, segundo a defesa de Ferreira, a justiça ainda não se pronunciou sobre o caso.

“O processo Judicial Eleitoral possui prazos mais exíguos que outros procedimentos judiciais, justamente para buscar o combate rápido e efetivo aos desequilíbrios impostos no processo eleitoral. A demora em decidir matéria relativa à propaganda eleitoral prolonga a disseminação da mensagem inverídica e com isso cria vantagem indevida ao suposto infrator, difícil de ser posteriormente reparada”, diz Valberto Azevedo, advogado de Ferreira.

IA também impõe dificuldades técnicas

Fernando Neisser, professor da FGV, ressalta que, por se tratar de um tema novo, não é possível exigir uma uniformidade nas decisões. Para ele, o maior problema da Justiça não será a diferença de interpretações da resolução do TSE, mas identificar quais conteúdos foram produzidos por IA.

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“Hoje, estamos num momento em que o desenvolvimento tecnológico avançou muito e de forma rápida, especialmente na produção de conteúdos com IA, que agora pode ser feita de forma gratuita ou muito barata. No entanto, a tecnologia de detecção desses usos não acompanhou esse avanço. Não temos filtros automatizados para identificar esses conteúdos. Meu receio não é que os juízes julguem bem ou mal, ou que as regras do TSE sejam aplicadas corretamente ou não. A preocupação é com a dificuldade técnica de determinar se um conteúdo foi feito com IA.”

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