O inquérito das milícias digitais, que agora investiga a conduta do empresário bilionário Elon Musk, já ouviu um ex-assessor do ex-presidente americano Donald Trump, o “guru” bolsonarista Olavo de Carvalho e até um cover do cantor Roberto Carlos que atuava como comentarista político na internet. A investigação foi aberta em julho de 2021 e ganhou ramificações, ao longo dos últimos anos, que atingiram também o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Inicialmente, a apuração duraria 90 dias. Até o momento, o inquérito foi prorrogado dez vezes, e o novo prazo de expiração, pedido pela PF, é de 13 de setembro – cerca de 20 dias antes das eleições municipais. Até este sábado, 13, a investigação já durou 1.017 dias.
Levantamento do Estadão em documentos do inquérito principal identificou que ao menos 22 pessoas já prestaram depoimento à Polícia Federal. Como a investigação relatada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes tem subdivisões que tramitam em sigilo, o número de investigados ouvidos pela PF é maior.
Procurados, o STF, a Procuradoria-Geral da República (PGR) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) não comentaram.
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A apuração sobre as milícias digitais tem sido alvo de críticas pela duração e abrangência de seu escopo. Em fevereiro, ao autorizar uma operação contra Bolsonaro e aliados, Moraes registrou que a investigação tinha cinco frentes, que iam desde ataques virtuais a opositores a medidas sanitárias na pandemia, passando por tentativa de golpe, até o caso das joias, revelado pelo Estadão.
Nos quase 3 anos em que o inquérito está aberto, Moraes já tomou outras decisões, como ordenar a prisão e solicitar a extradição do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, foragido nos Estados Unidos, afastar o ex-deputado Roberto Jefferson da presidência de seu partido, o PTB (atual PRD, Partido da Renovação Democrática). O ministro também mandou o economista Marcos Cintra parar de publicar “fake news” no X (antigo Twitter).
Alexandre de Moraes abriu o inquérito das milícias digitais na esteira do arquivamento da investigação sobre atos antidemocráticos em frente a quartéis do Exército em abril de 2020. Na ocasião, o ministro assumiu a relatoria após determinar que a nova apuração seria distribuída “por prevenção”, ou seja, por dependência, ao inquérito sobre as manifestações de cunho golpista, que também estava com ele.
Ao apontar a necessidade de abrir a investigação, Moraes registrou que havia “fortes indícios e significativas provas” que apontavam para “a existência de uma verdadeira organização criminosa, de forte atuação digital e com núcleos de produção, publicação, financiamento e político”. Na decisão, o ministro também definiu que o inquérito das milícias digitais ficaria sob responsabilidade da mesma equipe da Polícia Federal que havia chefiado as investigações sobre os atos antidemocráticos, “em virtude da conexão probatória”.
Quem foi ouvido no inquérito principal das milícias digitais
Na lista de depoimentos colhidos no inquérito principal, estão assessores de parlamentares bolsonaristas, apoiadores do ex-presidente e até personalidades estrangeiras e integrantes do governo anterior, como o ex-secretário nacional de Justiça José Vicente Santini, o ex-diretor de Programa do Ministério da Educação Ricardo Wagner Roquetti e o ex-assessor de Assuntos Internacionais de Bolsonaro Filipe Garcia Martins.
Em setembro de 2021, a Polícia Federal interrogou o então presidente da rede social Gettr, Jason Miller – conselheiro do ex-presidente americano Donald Trump – no aeroporto internacional de Brasília. Miller contou que havia chegado ao Brasil para participar da Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC), conhecida por reunir as principais autoridades da direita mundial. “Indagado (sobre) quem realizou o convite, respondeu que não irá mencionar o nome das pessoas que realizaram o convite, pois não considera essa informação relevante”, diz o trecho do documento.
Dias depois do depoimento do ex-assessor de Trump, também em setembro de 2021, a Polícia Federal ouviu José Luiz Bonito, um cover do cantor Roberto Carlos que atuava como comentarista político no Youtube. Bonito esteve na Superintendência da PF em Brasília e foi questionado, por exemplo, sobre os sistemas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Apoiador de Bolsonaro, ele declarou que não tinha conhecimento técnico sobre o assunto e se informava por lives do ex-presidente.
“Indagado se realiza um processo de checagem de conteúdo do que é publicado em suas redes sociais, respondeu que sim”, registrou o depoimento.
Em novembro de 2021, foi a vez de a Polícia Federal questionar o ideólogo Olavo de Carvalho. Na ocasião, ele negou manter relação com Bolsonaro e seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), e reconheceu ter sugerido o nome de Ernesto Araújo para ser ministro das Relações Exteriores e de Ricardo Velez para o Ministério da Educação. O guru do bolsonarismo morreu em janeiro de 2022, aos 74 anos.
Inquérito das milícias digitais tem ligação com outras frentes no STF
A apuração sobre as milícias digitais tem ramificações que tramitam em sigilo no STF. Em setembro do ano passado, o ministro Alexandre de Moraes homologou a delação premiada do tenente-coronel Mauro César Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro no bojo deste inquérito e de investigações conexas.
O militar citou, por exemplo, os nomes de Filipe Martins e do general Walter Braga Netto – ex-ministro da Defesa e da Casa Civil de Bolsonaro. Ambos se tornaram alvo da Operação Tempus Veritatis, deflagrada pela Polícia Federal em fevereiro deste ano para apurar uma tentativa de golpe de Estado e abolição do Estado Democrático de Direito depois das eleições de 2022.
A ação foi autorizada por Alexandre de Moraes e atingiu o próprio Bolsonaro, além de ex-ministros e aliados políticos. Na decisão de 135 páginas, o ministro anotou que a PF havia informado que a investigação sobre as milícias digitais estava dividida em cinco eixos:
– ataques virtuais a opositores;
– ataques às instituições (STF, TSE), ao sistema eletrônico de votação e à higidez do processo eleitoral;
– tentativa de golpe de Estado e de abolição violenta do Estado Democrático de Direito;
– ataques às vacinas contra a covid-19 e às medidas sanitárias na pandemia;
– e um suposto uso da estrutura do Estado para obtenção de vantagens, como o caso das joias, revelado pelo Estadão, e o uso do cartão corporativo para pagamento de bens pessoais.
Segundo Alexandre de Moraes, a operação focava em um dos eixos do inquérito. Os desdobramentos da atuação do grupo investigado, relatou o ministro, “se voltavam a disseminar a narrativa de ocorrência de fraude nas eleições presidenciais antes mesmo da realização do pleito, de modo a viabilizar e, eventualmente, legitimar uma intervenção das Forças Armadas, com abolição do Estado Democrático de Direito, em dinâmica de verdadeira milícia digital”.
Moraes decretou a prisão preventiva de quatro ex-assessores de Jair Bolsonaro: Bernardo Romão Correa Neto, Filipe Garcia Martins, Marcelo Câmara e Rafael Martins de Oliveira. O ministro mandou ainda apreender o passaporte do ex-presidente.
Decisões do inquérito já atingiram de Roberto Jefferson a Elon Musk
Nos quase três anos desde que a apuração das milícias digitais foi aberta, o ministro Alexandre de Moraes tomou decisões que atingiram desde o ex-deputado Roberto Jefferson até o empresário Elon Musk. O dono da rede social X ameaçou levantar restrições a perfis bloqueados na plataforma por ordem judicial e foi incluído no inquérito como investigado.
Com a inclusão de Musk no inquérito das milícias digitais, a Polícia Federal apura se o bilionário cometeu obstrução de Justiça ou incitação ao crime. Os investigadores também monitoram os desdobramentos do caso. Musk prometeu publicar decisões judiciais que determinaram o bloqueio de perfis no X, alegando que elas promovem censura, mas há determinações em sigilo. Uma eventual divulgação poderia ser interpretada como vazamento indevido.
Antes de atingir o bilionário, o inquérito chegou a Roberto Jefferson. Em novembro de 2021, Alexandre de Moraes tirou o ex-deputado da presidência do PTB por um período de 180 dias. Segundo o ministro, havia fortes indícios de que o partido estava sendo “indevida e reiteradamente” usado para impulsionar “declarações criminosas” de Jefferson nos perfis pessoal e da sigla, inclusive com recursos do fundo partidário.
O ministro também ordenou, no âmbito do inquérito, a prisão preventiva e a extradição do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, dono do canal Terça Livre, em outubro de 2021. O ministro ainda determinou que o Ministério da Justiça dê início imediato ao processo de extradição do militante de direita, que está nos Estados Unidos desde 2020.
Naquele mês, o ministro do Supremo mandou o X bloquear o “Terça Livre” e o perfil pessoal do blogueiro. Os perfis passaram a ficar visíveis apenas para usuários que estão fora do País. Mesmo com as contas retidas no Brasil, Allan dos Santos fez uma transmissão ao vivo na rede social de Musk em 7 de abril. A live ocorreu após o bilionário desafiar Alexandre de Moraes.
Na avaliação do advogado e professor de Processo Penal da Faculdade de Direito da USP, Maurício Zanoide de Moraes, a duração do inquérito das milícias digitais pode ser explicada porque “a portaria de instauração é extremamente aberta, muito ampla”. “É uma área de investigação que não para de produzir e não tem um contorno muito nítido”, analisa. “Um objeto tão amplo traz uma carga de excepcionalidade muito grande.”
Zanoide de Moraes explica que, em teoria, um inquérito policial tem uma razão para começar, que integra a portaria de instauração, mas há “uma liberdade de descobrir novas linhas investigativas e novos crimes”. O advogado afirma, por exemplo, que não há irregularidade em uma apuração iniciar com foco em um crime de estelionato, por exemplo, e terminar investigando tráfico de drogas. “Essa liberdade precisa ser acompanhada por uma lógica que justifique a manutenção da investigação”, diz.
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O advogado e professor de Direito Constitucional da Faculdade Arnaldo, Vladimir Feijó, registra que é preciso levar em consideração “o direito à verdade, conhecer todas as circunstâncias”. Para Feijó, doutor em Direito Humanos, colocar “panos quentes (neste caso) não contribui para o desenvolvimento e aperfeiçoamento da cultura das instituições e da democracia.”
“Por outro lado, o Estado não pode ficar ad infinitum numa perseguição contra membros da sociedade. É um direito fundamental a presunção de inocência. É outro direito a razoabilidade dos processos. Dois, três anos já me parece muito fora do padrão”, disse. “Deveria encerrar um e, se houvesse indícios da necessidade de ampliação, que se abrisse um outro com suas justificativas específicas.”
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