Das palavras ultimamente pronunciadas pelo sr. presidente da República, infere-se não ser o seu estado de espírito aquele que até há pouco sistematicamente definia a confiança que depositava em si e na sua gestão. O otimismo, de resto inconsistente, que transpirava de todas as suas atitudes, acabou por ceder lugar a uma inquietação crescente, na qual são evidentes os sinais de que admite S. Exa. que as coisas venham a piorar - não porque elas se tenham em si mesmas deteriorado, mas em consequência dos erros praticados por S. Exa. É que, com o correr do tempo e o contacto com a realidade, vai S. Exa. percebendo que governar uma nação de mais de 80 milhões de habitantes e que acaba de dar, com a vitória de 64 – que, embora S. Exa. a considere como obra das Forças Armadas, se deve ao próprio esforço da coletividade –, uma demonstração viva de fé democrática, é coisa muito diferente do comando de uma divisão ou de um exército.
Ao assumir as funções de presidente da República, imaginou o sr. marechal Costa e Silva que para essa dificílima missão estava perfeitamente capacitado, tanto mais que na profissão que adotara havia galgado com facilidade toda a escala hierárquica, dando sempre provas de aptidão e de descortino. Ao deixar os quartéis para bruscamente se investir das responsabilidades de supremo mandatário do Estado brasileiro – e isso nas condições que ele e seu antecessor estabeleceram, de comum acordo e prescindindo das advertências que lhes dirigiam cotidianamente os que haviam encanecido na vida pública –, fê-lo S. Exa. de ânimo leve, na convicção de que, no novo terreno que pisava, bastar-lhe-ia empregar a experiência adquirida na carreira militar e devotar aquele mesmo respeito que sempre demonstrara pelos regulamentos disciplinares ao sistema legal que juntamente com o sr. Marechal Castello Branco tinha encomendado ao sr. Carlos Medeiros da Silva e aos autores de seus complementos naturais, as leis de Imprensa e de Segurança Nacional.
No decorrer das primeiras etapas do seu governo tudo parecia sorrir-lhe, pois que, além de saber contar discricionariamente com a força dos regimentos, das brigadas e das divisões, dava ainda por certa a passividade da Câmara e do Senado, ambos constituídos pelos dois conglomerados que ele, como o seu antecessor, acreditava representarem a substância popular. Já nessa altura, para aqueles que através dos tempos afinaram aquela sensibilidade sem a qual ninguém será capaz de perceber os sinais precursores dos grandes terremotos, se mantinha S. Exa. acima dos acontecimentos, na ilusória suposição de que tudo ia pelo melhor e que, se algumas vozes se levantavam em dissonância, não correspondiam ao sentir das camadas profundas da nacionalidade. Pouco tempo durou, porém, a euforia presidencial. Umas após as outras, começaram a manifestar-se as contradições do artificialismo institucional que, pela pressão das armas, foi o País obrigado a aceitar. A desordem passou a campear nos arraiais estudantis, ao mesmo tempo que, ante o mal-estar geral, o clero revoltoso fazia sentir a sua presença até mesmo nas praças públicas. Dentro dos próprios limites do feudo aparentemente submisso à vontade do Palácio da Alvorada, não se passava dia sem que se manifestassem sintomas da insurreição latente. A Arena aderia à rebeldia geral com tamanha evidência que o próprio MDB sentiu que era chegado o momento da desforra. Resolveu então, com uma ousadia que a todos espantou, enfrentar a ditadura militar em que vivemos desde 1964 ferindo na sua suscetibilidade as Forças Armadas brasileiras.
Já agora, a ordem que julgava S. Exa. o sr. presidente da República dever a Nação às instituições que ele lhe impôs revela-se uma vã aparência, pois que, ao apelar para os que considerava correligionários seguros das acutiladas da oposição contra os seus companheiros de armas, se vê S. Exa. totalmente desamparado. Sob o cansaço das humilhações sofridas, aquilo que S. Exa. supunha ser a maioria parlamentar, lembra-se enfim de que, pela própria Constituição que passivamente aceitara, lhe assistia o direito de afirmar as suas prerrogativas, como lhe assistia a autoridade moral suficiente para discutir as razões com que tanto as Classes Armadas como o Executivo Nacional pretendiam ditar-lhe a pena a aplicar a um deputado faltoso. É então que o ex-general de Exército, habituado a não admitir que lhe discutam as ordens, se viu na pouco edificante posição de deixar de lado aqueles escrúpulos que o tinham levado a afirmar que jamais transgrediria um milímetro sequer as linhas da legislação que ele mesmo traçou para cometer uma série de desmandos contra a Lei e o regulamento interno do Congresso, tentando arrancar da Comissão de Justiça da Câmara, sob o protesto do seu digno presidente e o sentimento de nojo do País, a licença para processar o autor das injúrias aos militares.
Conforme o havia decidido, a sua vontade foi obedecida naquela Comissão, mas à custa da confiança que S. Exa. depositava em si mesmo e da excelência das instituições vigentes. E é diante desse quadro, todo ele feito de tonalidades sombrias, que nos achamos. Até aqui as coisas pareciam suscetíveis de uma recomposição. Apesar de tudo, a passividade do Congresso Nacional, aliada à disciplina militar, poderia ainda fazer as vezes do apoio da opinião pública. Agora, porém, que são claros os sinais da desagregação irredutível da maioria parlamentar, como o comprova a estrondosa derrota sofrida ontem pelo governo, quando mais de 70 deputados da Arena votaram contra a concessão de licença para processar o deputado Marcio Moreira Alves, pergunta-se: que é que poderá resultar de um estado de coisas que tanto se assemelha ao desmantelamento total do regime que o sr. presidente da República julgava fosse o mais conveniente àquele delicadíssimo e frágil arquipélago de grupos sociais a que se referia ainda ontem, cuja integridade, é S. Exa. o primeiro a reconhecê-lo, está por um fio?
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