O presidente Lula, em mais um dos seus manifestos em favor do estrito cumprimento das leis penais em vigor no Brasil, doa a quem doer e ajude a quem ajudar, proclamou que o general Braga Netto, preso pelo STF por suspeita de obstruir as investigações policiais sobre o Golpe dos Estilingues, tem direito à presunção de inocência. Quer dizer: o general só pode ser punido depois que ficar provada a sua culpa. “Espero que ele tenha o que eu não tive”, disse Lula.
É uma dessas mentiras de arrasar quarteirão que o presidente diz há mais de 40 anos, mas que vão ficando cada vez mais ambiciosas à medida que o tempo passa. Ele está, agora, numa fase de inventar situações que jamais aconteceram – como se dissesse, por exemplo, que acaba de voltar de uma conferência de cúpula em Marte, ou que negociou a paz na Gália tomando umas cervejinhas com Júlio Cesar. É o caso dessa história da “presunção de inocência”. Pouca gente teve tanto direito quanto Lula de ser tratado como inocente até a sentença de condenação.
Os advogados do presidente apresentaram 400 recursos judiciais nos processos em que foi finalmente condenado por corrupção passiva e por lavagem de dinheiro. Lula só foi preso depois das sentenças de pelo menos nove juízes diferentes, em três instâncias sucessivas – o juiz Moro, os três desembargadores do TRF-4 e os cinco ministros do STJ que fizeram a apreciação final dos crimes de que foi acusado. Jamais teve de sofrer a aberração-master do atual sistema de justiça deste país: o julgamento direto na última instância.
O que Lula finge que está pedindo para o general Braga é exatamente o contrário do que a Polícia Federal e o ministro Alexandre de Moraes estão fazendo com ele na vida real. No seu caso, como em tantos outros que caem no Departamento de Punições Prévias e Condenações Automáticas do STF, já foi declarada e encontra-se em fase de execução a “presunção de culpa”. A polícia não apresentou nenhuma prova minimamente séria para pedir a prisão preventiva do general. Mas ele está trancado nos cárceres do STF.
Braga, numa degeneração jurídica que só existe no Brasil de hoje, está sendo julgado já na última instância – ou seja, não tem direito a recorrer de nenhuma decisão tomada em relação a si próprio, pois não há instância superior a quem recorrer. Não pode, na prática, contestar nada daquilo que a PF e o STF apresentam como “prova” contra ele. Um advogado de porta de cadeia seria capaz de transformar essas provas em farinha de rosca. Mas não no seu caso. Quem está julgando as acusações é o próprio acusador – e vítima, também.
A prisão do general Braga é uma espécie de “Golpe 2 – o Retorno”, ou uma nova exibição, por parte do STF, de que a democracia no Brasil está sob risco de morte. O ministro Moraes e a PF, em consequência, precisam da nossa compreensão e apoio: devem continuar autorizados a violar a lei, porque estão nos salvando do mal maior de uma ditadura de direita. Já houve, dias atrás, o relatório de 880 páginas da PF sobre o Golpe Que Não Foi Dado, com o indiciamento de 37 acusados. Agora é o Golpe do General Braga Neto.
Leia também
Em sua versão 1.0 a PF e o ministro Moraes nos ofereceram o golpe dos kids pretos, do golpista que perdeu o táxi, do envenenamento de Lula, do enforcamento do próprio Moraes e de um bando de subalternos que, pelo que mostrou a polícia em seu inquérito, não seriam capazes de organizar um jogo de amarelinha. Foi, sobretudo, o golpe armado em que as armas, segundo a acusação da própria PF, eram um par de estilingues e a munição seria uma coleção de bolas de gude – além de um batom, descrito como “substância inflamável”. São os fatos.
Nada disso melhorou de qualidade com a prisão do general Braga Netto. Agora está se falando, por exemplo, de uma sacola de vinho com dinheiro dentro, coisa que só pode ser financiamento de golpe. Infelizmente, a sacola de vinho não apareceu em sua forma material. Não se sabe quanto dinheiro continha. Não se sabe quem estava com ela, nem se a entregou a alguém, nem no que o dinheiro foi gasto. Braga também teria tentado, segundo a PF, falar com o pai do coronel Cid para, “possivelmente”, obstruir a justiça. Obstruir como? Não há informações.
A esquerda, os que assinam cartas em defesa da democracia e as classes culturais brasileiras estão viciadas num novo entorpecente político-moral: a noção de que pessoas como o general Braga não têm direito à proteção das leis, por serem gente de direita, bolsonarista e provavelmente golpista. Se os seus direitos civis tiverem de ser respeitados, o fascismo vai tirar proveito disso. Não se pode, em suma, aplicar as regras da democracia se os possíveis beneficiários forem pessoas consideradas inimigas da democracia. Pode funcionar como tranquilizante, é claro. Mas com certeza é uma doença.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.