Durante o depoimento prestou à Polícia Federal sobre os atos golpistas do 8 de janeiro, o ex-presidente Jair Bolsonaro alegou ter compartilhado um vídeo questionando o processo eleitoral por equívoco, por estar sob efeito de morfina. A afirmação do ex-presidente se aproxima de tese de inimputabilidade penal – a embriaguez involuntária. Advogados, professores e ex-desembargadores ouvidos pelo Estadão apontam fragilidade da argumentação, enquanto defesa de Bolsonaro nega que o depoimento seja uma estratégia.
Dois dias depois dos atos de 8 de janeiro, quando ainda estava em Orlando, Bolsonaro compartilhou no seu perfil do Facebook um vídeo de uma entrevista, com os dizeres “Lula não foi eleito pelo povo, ele foi escolhido e eleito pelo STF e TSE”. Duas horas depois, a publicação foi apagada. Contudo, ela se tornou um dos motivos pelos quais o ex-presidente foi colocado sob a mira da Polícia Federal, por suposta incitação aos atos antidemocráticos.
O fato de estar sob o efeito de uma medicação que altere os sentidos pode ser enquadrado como o estado de “embriaguez involuntária”, uma causa de inimputabilidade prevista no Código Penal. Apesar do termo remeter a bebidas alcoólicas, a “embriaguez” mencionada na lei abarca o uso de toda e qualquer substância que leve uma pessoa a perder a consciência de suas atitudes – incluindo medicamentos.
Para que essa causa de inimputabilidade possa ser aplicada, há dois requisitos, de acordo com juristas. “Primeiro, a embriaguez tem que ser completa. A pessoa tem que estar completamente desprovida de higidez mental, não ter a menor ideia do que está fazendo. Segundo, tem que ser involuntária”, diz Maíra Zapater, professora de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
No caso de remédios, a docente explica que um acusado que use a tese de embriaguez involuntária para se defender precisa “demonstrar que ficou completamente fora de si, que não sabia e não tinha condições de saber que ia ter aquele efeito adverso”.
A professora e doutoranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Juliana Bertholdi, aponta que há nuances nessa causa de inimputabilidade. “Se a embriaguez não for completa e a pessoa tiver parcial capacidade de se autodeterminar, há uma diminuição da pena.” A atenuante vai de um a dois terços da pena.
Fábio Wajngartem, ex-chefe da Secom de Bolsonaro e um dos advogados que o acompanhou no depoimento desta semana, rejeita que haja qualquer estratégia. “Não se trata de argumento. São fatos verídicos. No depoimento não se fala em dose, não se argumenta nada. O depoente (Bolsonaro) responde e apenas relembra o que ocorreu na data em questão”, disse ao Estadão.
O advogado também destacou que Bolsonaro apagou o vídeo assim que avisado, e que o incidente aconteceu “na rede que ele menos utiliza”.
Denúncia criminal
Marco Antônio Nahum, advogado e desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, avalia que “tecnicamente, é uma estratégia que eu não diria ser das melhores”. Ele explica sua posição: “a embriaguez, involuntária, pode ensejar a absolvição. Mas, quando não é, não altera o julgamento dos fatos. Com essa tese, não creio que ele vá conseguir a isenção de responsabilidade criminal”.
Como mostrou o Estadão, que teve acesso à íntegra do depoimento, Bolsonaro apresentou documentos médicos que comprovariam que, no dia 10 de janeiro, havia recebido alta hospitalar e ainda estava sob efeito de morfina.
Ainda que esses elementos sejam suficientes para comprovar um eventual estado de embriaguez involuntária, “isso dificilmente impede que haja uma denúncia”, explica a professora Maíra Zapater.
Além de adiantar um possível argumento da defesa e depender de prova, na avaliação da docente “uma alegação desse tipo depende de tantos elementos para serem demonstrados, que é pouco para dizer que já haveria uma falta de justa causa para uma ação penal”.
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