BRASÍLIA – No auge da crise que abalou o País, em junho de 2013, Dilma Rousseff tentou fazer um pacto com o PSDB, à época o principal partido de oposição ao PT. Sem alarde, Dilma pediu que o então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, consultasse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. A ideia era selar um acordo com os adversários tucanos que desse respaldo à proposta de plebiscito para convocar uma Assembleia Constituinte exclusiva sobre reforma política.
Cardozo embarcou de Brasília para São Paulo e teve encontro com Fernando Henrique na casa dele, em 24 de junho. Cinco dias antes, o prefeito Fernando Haddad e o governador Geraldo Alckmin já haviam revogado o aumento de R$ 0,20 na tarifa de ônibus, trem e metrô. Mas os protestos nas ruas continuavam, com ares de levante.
Fernando Henrique apoiou a ideia da reforma política e disse que conversaria com líderes do PSDB. Não concordou, porém, com a Constituinte exclusiva, também vista com receio no Congresso e no Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro da Justiça voltou para a capital da República sem um acordo nas mãos, mas a presidente já havia chamado reuniões, naquele dia, com governadores, prefeitos e até com líderes do Movimento Passe Livre (MPL).
Nos encontros, Dilma anunciou medidas para responder aos protestos, como aumento dos investimentos em transportes e ações de combate à corrupção. Falava em melhorar serviços públicos que atendiam à classe média e chegou a sugerir o polêmico plebiscito para reformar o sistema político. A proposta, considerada inconstitucional, nunca saiu do papel.
“Eu e o presidente Fernando Henrique trocamos ideias sobre isso, numa conversa bastante cordial, mas que não teve sequência”, disse Cardozo ao Estadão. Em entrevista concedida meses depois, o ex-presidente afirmou que, em junho de 2013, as ruas deram um recado. “Há uma insatisfação que corta todas as classes e isso é uma questão que nós todos temos de levar em consideração. Não é só o governo”, argumentou FHC.
Até os protestos de 2013, Dilma era popular e o movimento “Volta, Lula” só aparecia nos bastidores. Fora do Palácio do Planalto, Luiz Inácio Lula da Silva não gostou de saber que Cardozo havia se encontrado sob reserva com Fernando Henrique, para selar um pacto com o PSDB.
“Nós até hoje não sabemos o que foi junho de 2013. O PT não percebeu o que estava acontecendo”, reclamou Lula em uma reunião do partido, em 2016, após o impeachment de Dilma.
Enquanto o PT e o PSDB não conseguiam se entender, Haddad e Alckmin começavam ali uma relação de confiança.
“A crise criou um momento de solidariedade, que favoreceu a construção de uma resposta conjunta”, afirmou Alckmin ao Estadão. Hoje vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, o ex-tucano e adversário histórico de Lula se aproximou do petista justamente pelas mãos de Haddad.
A história mais parece uma trama em que o “Sobrenatural de Almeida” – personagem de Nelson Rodrigues – desembarcou na cena política, mudando todas as peças do jogo. Lula costuma dizer que “ressuscitou”, após ficar 580 dias preso pela Lava Jato, em Curitiba, de abril de 2018 a novembro de 2019. Haddad perdeu algumas eleições, mas é agora ministro da Fazenda. Dilma, que vivia às turras com ele, preside o Banco dos Brics, Alckmin migrou para o PSB após mais de três décadas nas fileiras tucanas e o PSDB, depois de todas as intempéries, desmoronou.
“Há dez anos, a disputa do PT era com o PSDB, não era com Jair Bolsonaro”, descreveu o deputado Jilmar Tatto (PT-SP), que foi secretário municipal dos Transportes. “À época, Alckmin era expoente do PSDB e a crítica interna era a de que Haddad não demarcava o campo para enfrentar aquele que seria candidato à Presidência contra Lula.”
Na noite de 17 de junho de 2013, Alckmin e o núcleo duro do governo estavam no Palácio dos Bandeirantes quando viram uma passeata com milhares de pessoas caminhar naquela direção. “Ei, Geraldo, seu governo vai cair”, gritavam os manifestantes.
As luzes do Bandeirantes estavam apagadas. “A gente olhava pela janela e via que algumas grades dos portões começavam a ficar envergadas”, disse o então secretário da Casa Civil, Edson Aparecido, que era do PSDB e hoje está no MDB. “Viramos a madrugada e o tempo todo o Geraldo e o Haddad se falavam.”
Pizza
Aparecido lembra até mesmo do cardápio noturno, naqueles momentos de tensão. “Pegamos lá na cozinha do palácio uma pizza de mussarela com massa de tomate. Era aquela pizza que ninguém aguentava, terrível, mas o Geraldo gostava”, contou ele, que hoje é secretário municipal de Governo.
Naquele mesmo dia, vândalos invadiram a Assembleia Legislativa do Rio e subiram no teto do Congresso, em Brasília. “Eu recebia telefonemas de deputados e senadores dizendo: ‘Vão nos matar aqui dentro, você precisa tomar uma providência’”, contou Cardozo.
Sandro Avelar, então secretário de Segurança do Distrito Federal, afirmava que a tropa de choque nas ruas poderia resultar em mortes. “Então, pensamos em chamar os líderes do movimento e negociar a pauta. Mas não tinha uma pauta. Você olhava pela janela e via lá: ‘Mais verba para a Educação’; ‘Contra a PEC que tira poder do Ministério Público’; ‘Fim do exame da OAB’”. Era como se dissessem: ‘Vocês não falam mais por nós’”, resumiu o ex-ministro da Justiça.
Vinte e quatro horas depois, em 18 de junho, o ataque foi à sede da Prefeitura de São Paulo. “Aí o Haddad ligou para o Alckmin e pediu que a Polícia Militar agisse”, relatou Tatto. O prefeito havia saído para se encontrar com Dilma, que estava na sede do Banco do Brasil, onde fica o gabinete da Presidência em São Paulo, na Avenida Paulista.
Em artigo publicado na revista piauí, em junho de 2017, Haddad disse que a PM era truculenta e reprimia o movimento nas ruas, a não ser quando os “alvos da fúria” eram prédios municipais, como o Edifício Mattarazzo. “Nesses casos, a PM simplesmente cruzava os braços”, observou. Ele chegou a pedir a demissão do comandante-geral da PM, Benedito Meira. Alckmin não aceitou. “O tempo mostrou o acerto da nossa decisão”, disse o vice-presidente.
Mau humor
Para Cardozo, as jornadas de junho de 2013 revelaram um “mau humor social”. Mesmo na cúpula do PT a avaliação é de que houve um descompasso entre a mudança de patamar de alguns setores da sociedade e a falta de serviços públicos para atendê-los.
“As manifestações representaram um divisor de águas histórico porque tudo aquilo motivou o processo político que culminou com a queda de Dilma”, disse o ex-ministro, que defendeu a então presidente no processo de impeachment. “Foi o ovo da serpente, mas, infelizmente, uma parte do PT, do PSOL e do PSTU não viu o que ocorria e foi engolida pela extrema-direita radical”, emendou Tatto.
Em agosto de 2013, Dilma sancionou a lei que regulamentava a delação premiada e definia o conceito de organização criminosa, no rastro dos protestos que incendiaram o País. Depois da prisão de Lula, em 2018, a ex-presidente afirmou que se arrependia do ato.
“Infelizmente, essa lei foi assinada sem tipificação exaustiva. E a vida mostrou que ela poderia virar uma arma de arbítrio, de absoluta exceção. Quem assinou? Foi alguém de algum outro partido político? Não, foi o meu partido, porque fui eu que assinei”, lamentou.
Cardozo admitiu que o “grave erro” do projeto foi ter deixado “inteiramente aberto” o processo de delação. “Mas como iríamos imaginar que um grupo de promotores e juízes utilizaria essa lei para seguir um projeto político messiânico?”, perguntou. Antes de encerrar, pensou um pouco e ele mesmo respondeu: “Só se nós tivéssemos uma pitonisa ou uma bola de cristal...”
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