Eles fazem parte da paisagem da Câmara dos Deputados. Mesmo na votação do arcabouço fiscal, um tema árido, que não eletriza a audiência da internet, faziam transmissões ao vivo e se digladiavam por uma frase de efeito em busca de engajamento. Memes e lives são os símbolos dos parlamentares da classe política digital.
Os plenários de hoje são povoados por telefones celulares, enquanto os partidos caçam influenciadores para angariar votos. Esse modelos seriam a expressão, na política, da organização da sociedade em redes sociais, uma forma de se relacionar que levou ao Congresso deputados como Fábio Teruel (MDB-SP), André Janones (Avante-MG) e Nikolas Ferreira (PL-MG). Trata-se de um modelo à beira de uma outra revolução, a que vai criar um novo tipo de representante: a classe política da inteligência artificial.
Dez anos depois das jornadas de junho de 2013 e do nascimento de um novo ciclo no País, o da República Digital, a expectativa em torno dessa revolução é compartilhada por políticos – mesmo os que nasceram na época do mimeógrafo e do panfleto –, cientistas sociais e especialistas em análise de dados, ouvidos pelo Estadão sobre o futuro das mobilizações sociais e das relações da multidão com seus representantes.
Os números mostram o tamanho do desafio e da rapidez da mudança neste século. Em 2005, quando o Movimento Passe Livre (MPL) começou seus primeiros atos contra o aumento das tarifas em São Paulo, havia, segundo o Banco Mundial, 36 milhões de usuários de internet no Brasil. Hoje, eles são 170 milhões.
A combinação das capacidades de gerar informação e distribuição por meio de novas tecnologias não vai permitir a estabilização que a estrutura social precisa para pensar, refletir e governar. Imagens e áudios falsos, discursos criados e dirigidos rapidamente às pessoas certas em busca de indignação e ressentimento e ódio podem aprofundar de forma extrema o abismo dos afetos.
“A inteligência artificial vai criar uma quantidade de informações que as instituições terão cada vez menos tempo para uma estabilização, o que era natural em épocas passadas”, afirmou Manoel Fernandes, diretor da Bites Consultoria.
Atenção
O que todos hoje disputam é a atenção das pessoas. Segundo Fernandes, as redes ainda são mobilizadas pelo “bichinho fofo, pelas histórias de superação e pelas polêmicas”. Jair Bolsonaro é um marco nessa história. Aproveitou-se das polêmicas para energizar sua presença na internet, lógica que o ajudou a se eleger presidente da República, em 2018. Para Fernandes, a classe política analógica de 2013 continuará a ser surpreendida pela tecnologia. Mas isso não significa que o estilo polêmico de Bolsonaro e de Janones se mantenha. Há desgaste. Os dois foram fenômenos da era digital.
“Eles fazem parte da pré-história do uso da internet e da tecnologia pela classe política. A geração que vai assumir agora é a geração da inteligência artificial. Não se trata mais de só ficar fazendo gracinha na rede: é preciso entender como gerar informação para o eleitor. Assim deve ser essa nova classe política”, disse Fernandes.
A política tradicional também resiste. Para o deputado estadual Antonio Donato (PT), que se define como um homem da época do mimeógrafo e das reuniões nos bairros, as redes sociais da política digital estimularam o confronto e empobreceram o debate público.
“Você se mata para discutir um projeto, fazer o debate e buscar consenso e, no plenário, um cara que não fez nada aparece, faz uma selfie e diz: ‘Acabamos de aprovar tal coisa’. Para o eleitor dele, parece que o cara é que trabalhou. É difícil”, afirmou Donato.
O petista é um dos que acreditam que a inteligência artificial pode produzir novos extremismos. “No limite, pode mapear perfis psicológicos de cada eleitor pelos dados abertos e chegar a cada um deles com uma mensagem adequada, segundo suas frustrações, canalizando-as para a antipolítica.”
Donato mesmo já testou essa nova realidade para se opor ao governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos), em São Paulo. E encomendou um discurso ao ChatGPT. “Estou conhecendo o novo ambiente. Outro dia eu pedi a ele (ao ChatGPT): ’Faça um artigo com argumentos contra a privatização da Sabesp (um dos planos de Tarcísio).” E ele fez”, contou.
Inovação
Antes da nova revolução digital criar sua classe política, as instituições contra-atacam. Com as regras que limitaram esse tipo de impulsionamento, o combate às fake news feito por agências de checagem e a ação da Justiça Eleitoral, além do aprendizado de outras forças políticas, ficou mais difícil chamar a atenção nas redes. Mas não ficou impossível.
Exemplo disso seria a atuação do prefeito do Recife, João Campos (PSB). Ele vive em uma cidade com 1,7 milhão de usuários de internet – São Paulo tem 12 milhões –, mas consegue ter mais seguidores e interações do que o prefeito da capital paulista, Ricardo Nunes (MDB). Nas quatro principais redes – Facebook, Twitter, Youtube e Instagram, Campos coleciona 725 mil seguidores, enquanto Nunes angaria 482 mil. No período entre 23 de abril e 22 de maio, o socialista obteve 836 mil interações e seu colega, 56 mil.
Nas capitais, Campos é superado só pelo prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD) – 1,4 milhão de seguidores e 834 mil interações no mesmo período. “O que ele (Campos) descobriu? Ele descobriu que a audiência dele estava no Kwai. Ele tem no Kwai 478 mil seguidores, mais da metade do que seu número de seguidores nas redes clássicas. O Kwai, que é uma rede de classe C e D, é onde ele está estourando”, observou Fernandes. Um dos apelos do Kwai é remunerar os usuários quando assistem aos vídeos.
Em um desses vídeos, o prefeito do Recife dizia: “Acabei de receber um vídeo absurdo onde pessoas que são contratadas pela prefeitura jogam lixo em um canal. Liguei de imediato para a secretária e para o diretor de limpeza urbana e já informaram que a empresa foi notificada, para a devida punição.” A mesma postura em busca de contato com o eleitor pode ser encontrada nos vídeos de outros fenômenos no uso das redes, como os do prefeito Topázio Neto (PSD), de Florianópolis (116 mil seguidores no Tik Tok), e Bruno Reis (DEM), de Salvador, com seus 555 mil seguidores e 142 mil interações no mesmo período.
“Acompanhei as jornadas de 2013. Eu tinha 18 anos. Meu pai (Eduardo Campos, governador de Pernambuco) me mandou um texto no qual mostrava que a mudança da forma de comunicação na sociedade levaria à reorganização da política”, afirmou Campos. Contrário à estridência e à lacração nas redes, o prefeito considera ser ainda cedo para saber os efeitos que a inteligência artificial deve ter, mas acredita que ela será disruptiva também na política, inclusive com risco de servir ao estímulo do discurso do ódio e extremismos. “É importante que tenhamos mecanismos de regulação. Mas jamais para impedir a liberdade de expressão.”
Veículos
Campos e outros políticos se transformaram, na avaliação dos analistas, em uma espécie de “veículos de mídia”, com audiência muitas vezes maior do que os jornais locais. Se vivíamos em uma sociedade definida pelo sociólogo Manuel Castells como de “autocomunicação de massas”, esse grupo de políticos criou a “autocomunicação política de massas”. Na Câmara, exemplares desse fenômeno, segundos os analistas, são os deputados Amom Mandel (Cidadania-AM), Guilherme Boulos (PSOL-SP) e Nikolas Ferreira (PL-MG).
Com 21 anos, Mandel é o deputado proporcionalmente mais votado das eleições de 2022, quando recebeu 14,5% dos votos do Amazonas ou 288.555. O candidato usava o que chamou de mensagens de conscientização, como “Beba água” e “Use o cinto de segurança”. Na semana passada, suas redes (390 mil seguidores) estavam cobrando a prefeitura de Manaus pelo aumento da passagem de ônibus de R$ 3,80 para R$ 4,50. Se há dez anos o que incendiou as ruas foram R$ 0,20, agora Mandel busca incendiar as redes por R$ 0,70. O vídeo se tornou sua postagem com maior alcance – 242 mil pessoas.
Lá pelas tantas, o deputado critica até o avô, o desembargador Domingos Chalub, que concedeu liminar favorável às empresas de ônibus da cidade em um processo sobre falhas no sistema de bilhetagem. Mandel afirma que os políticos tradicionais têm um problema sério: não conseguem transmitir o que estão fazendo aos eleitores. O deputado, que pretende agora investir em redes como o Kwai e o Tik Tok, passou a usar sistema de inteligência artifical, como o ChatGPT e o Bard, a aposta do Google na área.
“Além de revisar projetos, eles ajudam as pessoas a se expressar melhor”, avaliou, citando como exemplo o fato de sua equipe usar a inteligência artificial para ensinar crianças de comunidades de Manaus a escrever cartas e e-mails. As correspondências são entregues aos secretários estaduais e municipais.
“A inteligência artificial não é boa nem má. A ciência pode criar a bomba atômica, mas também a vacina. Que todos usem essa ferramenta para beneficiar a democracia”, disse Mandel.
Para ele, como para os demais entrevistados, cada nova fase da tecnologia não provocará o desaparecimento dos antigos hábitos políticos. Homens do mimeógrafo e da inteligência artificial vão conviver nos plenários dos Parlamentos. E, mesmo que a produção dos tradicionais não entre na primeira página do Google, eles terão de produzir consensos e leis enquanto administram municípios, Estados e o País.
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