Dez anos em que o Brasil foi às ruas: movimentos procuram alternativas para mobilização

Convocação por meio de eventos criados na rede social é coisa do passado, mas os ativistas acreditam ainda ser possível atrair milhões de indignados

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Foto do author Marcelo Godoy

O meme trazia a foto de Geraldo Alckmin, então governador de São Paulo, e de Fernando Haddad, então prefeito da capital, e duas frases: Feliz 2013! #VaiTerLuta. O Movimento Passe Livre (MPL) começava a produzir memes e posts, se preparando para a mobilização contra o aumento da tarifa de ônibus ainda em 2012. A consigna “Se a tarifa aumentar, São Paulo vai parar!” foi espalhada pelo movimento que contava com mais de 200 mil seguidores. A explosão de junho de 2013 foi planejada e executada com uma estratégia de mobilização na rede social que acendeu uma faísca para incendiar o País.

Publicação feita pelo Movimento Passe LIvre anunciando a mobilização no Facebook contra o aumento da tarifa de ônibus. Foto: Reprodução/Facebook MPL

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Dez anos depois, o modelo do MPL, que seria seguido depois pela direita durante as manifestações do impeachment de Dilma Rousseff em 2015 e 2016, está morto. A criação de eventos na rede de Mark Zuckerberg, que se tornara moda no começo dos anos 2010, está ultrapassada. Orfãos do Facebook, os movimentos buscam reinventar o modelo que lhes permitiu conduzir a indignação popular às ruas, levando às cordas políticos e abrindo a temporada de mudanças que encerrou um ciclo da Nova República, criando a República Digital.

“Como as redes sociais eram algo novo em 2013 e em 2014, a classe política não sabia como lidar. Se ela soubesse, teria feito o projeto de lei das Fake News lá atrás. Ninguém sabia que isso ia derrubar a Dilma”, afirmou Renato Battista, de 28 anos, dirigente do Movimento Brasil Libre (MBL).

O grupo de jovens que iniciou a temporada das grandes manifestações de ruas no País tinha uma estratégia definida, assim como seu objetivo: derrubar o aumento da tarifa.

Em 2013, os integrantes do Passe Livre queriam um movimento curto, intenso, fechando ruas e bloqueando o tráfego na cidade, e que mantivesse uma pauta clara – o cancelamento do aumento da passagem – até que os protestos saíssem do controle do MPL. A estrutura para divulgar a ação do grupo começou pela página do Facebook, criada em 2005. “Fala-se muito de 2013 como algo espontâneo. Mas tem muito de organizado”, afirmou Lucas Monteiro, um dos porta-vozes do movimento em 2013.

A geógrafa Mayara Vivian, uma das fundadoras do Movimento Passe Livre Foto: Felipe Rau/Estadão

Aposta

A aposta nas redes sociais era vista como uma forma de fugir do anacronismo de manter organizações analógicas em um mundo digital. Os jovens acreditavam que era preciso apostar na conexão com as redes e em modelos inovadores de mobilização para chamar a atenção e não se burocratizar. O movimento aprendia lições com experiências ao redor do mundo, como o uso do smartphone na Primavera Árabe e das redes sociais no Occupy Wall Street. E, mais recentemente, com a mobilização do estalido chileno.

A geógrafa Mayara Vivian, de 33 anos, uma das fundadoras do MPL, viveu esses momentos. “Sabe aquele kit completo, que tinha de ter o boné, tinha de ter o carro de som, o boné e alguém gritando? Era uma receitinha de bolo que olhava a imagem das pessoas na rua como ‘o outro’. Havia uma padronização que acabava sectarizando”, contou Vivian.

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O MPL decidiu criar sua própria fórmula para a juventude: saía o carro de som e entrava uma batucada. Os eventos convocados pelo Facebook e transmitidos em redes sociais. O historiador Lucas Monteiro, de 38 anos, outro fundador do MPL, conta que, em 2013, a página do Facebook do MPL já estava consolidada. “Naquele ano ainda não tinha acontecido a alteração de algoritmo para o que se chamou de ‘filtro bolha’. Então, as pessoas viam a timeline delas de acordo com o que era postado. E a gente tinha uma página que era referenciada, o que nos deu um meio de transmissão direta das manifestações de maneira muito intensa.”

Lucas Monteiro, ex-dirigente do Movimento Passe Livre e um dos líderes das jornadas de junho de 2013 contra o aumento de R$ 0,20 na tarifa de ônibus Foto: Alex Silva/Estadão

Em sua tese sobre as jornadas de junho de 2013 apresentada no Institut des Hautes Études de L’Amérique Latine, a cientista política Flávia Pellegrino Vieira, do Pacto pela Democracia, retrata essa mobilização pela rede social: no primeiro ato (6 de junho) contra o aumento das passagem, a página do Facebook do MPL registrou que 20.556 pessoas confirmando a participação no evento. No ato seguinte (7 de junho), eram 6.169; no terceiro, 12.782. No quarto (13 de junho) foram 28.228 e, após a reação enfurecida da PM, o quinto ato, o de 17 de junho, contou com 215.254 participantes confirmados. O movimento então transbordou o MPL e virou uma onda de repúdio à classe política e à qualidade dos serviços públicos prestados pelo Estado.

Para Monteiro, a possibilidade de usar as redes sociais para ter um discurso direto para as pessoas que queriam ir às manifestações não existe mais. “A arquitetura das redes sociais mudou profundamente de 2013 para cá. Os clusters, a setorização, a lógica de engajamento mudou muito. Em 2013, elas eram menos sofisticadas e isso permitia um número de interações muito alto”, contou. A inovação do movimento engendrava, no entanto, a necessidade da continuidade a fim de evitar a burocratização ou a criação de um novo padrão, como o do criticado pelos jovens, com carros de som, lanches, camisetas e bandeiras.

“Depois de vitorioso, um movimento se burocratiza. A burocratização é se prender a uma forma organizativa anterior, reproduzir o que já fazia. O MPL não conseguiu continuar inovando. É por isso que saio do movimento. A minha prática não consegue mais inovar. Eu fiz parte disso. E, na medida que não consegue inovar, não faz sentido continuar”, disse o historiador, que dá aulas em um colégio particular em São Paulo.

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Mayra também deixou o MPL por entender que era preciso abrir espaço para uma nova geração – manteve-se, no entanto, como rede de apoio ao grupo, o chamado MPL ampliado. Em 2018, ela foi ao Chile trabalhar em comunidades indígenas mapuches. E lá estava quando surgiu o estalido, o movimento de protestos que emparedou o presidente Sebastián Piñera. Juntou-se ao No Mas AFD, movimento que pedia a mudança do modelo de previdência. Voltou ao Brasil com a pandemia de covid-19 e se vinculou às manifestações do Fora Bolsonaro e à organização do movimento CryptoRave.

Milena Silva é da nova geração do MPL. Ela contou ao Estadão que o grupo aposta na construção de “diversos espaços, como a Coalizão Triplo Zero, que debate para além da tarifa zero”. A coalizão é uma rede com dezenas de organizações que lutam por três zeros: tarifa, emissão de poluentes e mortes no trânsito. Ela foi formada em março e envolve entidades da sociedade civil, movimentos sociais e pesquisadores.

“Estamos indo nos espaços para pautar a tarifa zero que acreditamos e também cobrar. Acreditamos que é na rua que vamos conseguir a tarifa zero que acreditamos.” O MPL, segundo ela, manterá sua luta por transporte público gratuito se organizando de “forma autônoma e horizontal”.

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MBL

Não foi só a esquerda que conheceu a ascensão e queda dos eventos do Facebook. O cientista político e militante do MBL Renato Battista contou que a primeira manifestação do movimento, em 2014, foi criada por meio de um evento na rede. “Foi logo que saiu o resultado que Dilma (Rousseff) venceu (as eleições) e esse evento bombou de um jeito que a gente não imaginava. Aí tivemos de alugar um carrinho de som e colocamos lá no Masp. Devia ter uma cinco mil pessoas na manifestação.”

Além do Facebook, o MBL passou a usar o WhatsApp. O movimento chegou a ter milhões de interações em sua página no auge das manifestações pelo impeachment de Dilma, em 2016. De lá para cá, muita coisa mudou. Primeiro, os jovens se afastaram do Facebook. “Hoje há proliferação de redes muito maior do que naquela época e você tem de saber administrar todas de alguma maneira. Chamar um evento só pelo Facebook hoje é impossível.”

Depois, o alcance das publicações políticas foi limitado pela legislação eleitoral. “Nossa página no Facebook disputava alcance com o (Donald) Trump. Hoje qualquer paginazinha que não fala de política, que fala de fofoca, de esportes, tem mais.” Battista afirmou que sofre com o controle das redes, com a retirada de conteúdos.

Renato Battista, dirigente do MBL (Movimento Brasil Livre), no escritório do grupo, em São Paulo Foto: Werther Santana/Estadão Conteúdo

“Eu faço um react com um conteúdo da Globo, e o próprio YouTube pode retirar do ar a publicação alegando violação de direito autoral. No Tik Tok eu não posso falar de palavra guerra ou colocar uma explosão que aconteceu em algum lugar. Como trato de geopolítica sem poder falar de conflitos armados?”.

Apesar dos novos desafios, Battista acredita ser ainda possível mobilizar a indiganação das pessoas como no passado, “As redes sociais deram voz a essas pessoas. Países que não vão bem aparecem com alternativas extremadas. Da nossa parte é saber trabalhar independente do sistema”. Para o dia 4, o grupo marcou novo protesto, desta vez, contra a cassação do deputado Deltan Dallagnol (Podemos-PR). No entanto, depois de alegar estar sob ataque e boicote de “alas do bolsonarismo”, o grupo cancelou sua participação no ato.

Os desafios de verbalizar o que pensam os descontentes permanece abertos aos movimentos e aos políticos, apesar de suas visões distintas de mundo. Mayara Viviam continua a acreditar no que a moveu em 2013: “O papel do movimento social é tensionar para que o governo tenha base, respaldo na rua, para radicalizar e tornar mais efetiva suas ações para retirar privilégios. Tirar privilégios dessas pessoas não é fácil.”

Mas a ideia de que um novo ciclo se abriu em 2013 no Brasil é compartilhada até por quem teve o dever de manter a ordem durante os protestos. Hoje vereador em Bauru, o coronel Benedito Roberto Meira era o comandante da PM paulista. Dez anos depois, ele afirmou: “Houve despertar da importância da manifestação pública. O povo tem de usar esse direito assegurado pela Constituição de se insurgir contra o governo e mostrar que não está satisfeito com a política social. A manifestação coletiva e grande é extremamente pertinente e salutar ao mostrar ao governo que a vontade dele deve estar em sintonia com a das pessoas.”

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