O jornalista e escritor francês Gilles Lapouge, colunista do Estadão, morreu nessa quinta-feira, 30, em Paris. Segundo familiares, Lapouge não resistiu a uma infecção pulmonar. Jornalista do Estadão há 70 anos, ele faria 97 anos em novembro. Viúvo, deixa os filhos Benoit, Laure-Marie, Mathilde e Jérôme.
Gilles era um apaixonado pelo Brasil, onde chegou em 1951, a convite do jornalista Júlio Mesquita Filho, diretor de O Estado de S. Paulo. O jornalista francês então se mudou para o Brasil e passou a visitar os lugares recomendados pelo editor, colocando em cada um deles a visão social e econômica pelo ponto de vista de quem visitava o País pela primeira vez.
Entre as suas coberturas marcantes, está a da morte do general francês Charles De Gaulle.
Em 2013, o mais antigo colaborador do jornal visitou o Acervo Estadão, onde pôde ver a edição original com o seu primeiro texto assinado no jornal: “A vocação industrial de São Paulo”.
Publicado em 25 de janeiro de 1954, o texto fazia parte do caderno especial sobre o 4º centenário da cidade. A colaboração de Gilles Lapouge, no entanto, começara exatos três anos antes, com “A situação econômica na França”, texto que saiu sem assinatura na edição de 25 de janeiro de 1951. Nessas quase sete décadas, Lapouge publicou mais de 10 mil textos no jornal. O último deles foi no começo de junho deste ano: As coincidências da raiva. “Ele tinha muito orgulho de trabalhar no Estado por 70 anos” , disse Jérôme Garro, um de seus quatro filhos. “Ele sempre dizia ‘meu jornal’ quando nos falava sobre o Estado. Lembro também que, há alguns anos, ele falou sobre a carta com a qual se candidatou ao jornal: ‘Havia toda a minha vida nesta carta’.”
“Fiquei chocado com a notícia da morte do Gilles Lapouge, de longe o melhor correspondente do Estado, onde nos honrou com seu trabalho por 70 anos. Sua lacuna jamais será preenchida, homem de uma cultura e de um refinamento que não existem mais nos nossos dias, onde a boçalidade impera. Enriqueceu o Estado com seu trabalho ininterrupto a partir de 1950, quando, a convite de meu avô, Julio de Mesquita Filho, e por indicação de outro gigante, o historiador francês Fernand Braudel, veio para o Brasil. Tive o privilégio de sua amizade e generosidade por 50 anos”, afirmou Ruy Mesquita Filho, jornalista e acionista do Grupo Estado.
Para João Caminoto, diretor de Jornalismo do Grupo Estado, “a biografia de Lapouge está entrelaçada com a história do Estadão ao longo dos últimos 70 anos”. “Perdemos um grande jornalista, escritor e intelectual sempre apaixonado pelo Brasil, mas, acima de tudo, uma pessoa de enorme grandeza. Ficamos mais pobres”, afirmou.
Em junho, os filhos de Lapouge informaram que o pai havia passado por uma cirurgia e se recuperava lentamente no hospital. Nesse período, segundo contaram já em julho, Lapouge passou a rever no Twitter seus textos publicados no Estadão. Tinha planos de criar uma conta na rede social e de voltar a escrever logo.
“O Gilles adorava trabalhar no Estadão, era um equilíbrio existencial para ele. Todos os dias ele tinha essa necessidade, uma bela necessidade, de produzir seus artigos. Ele continuava extremamente ativo e tinha seu encontro diário com a escrita. Ele amava muito o espírito do Brasil, a cultura brasileira, e esse exercício profissional diário, sobretudo para um escritor e jornalista, era algo muito importante em que ele colocava realmente o coração”, afirmou Michel Goujon, editor do clube de livros France Loisirs, que trabalhou com Gilles por muitos anos.
“O Gilles foi um intelectual completo, um humanista, um progressista, preocupado com as questões do mundo. A gente sempre saía melhor das leituras dos textos dele”, disse o ex-diretor de Desenvolvimento Editorial do Estadão Roberto Gazzi. “Tinha um amor especial pelo Brasil, com uma visão crítica do País. Era um patrimônio do jornal”, afirmou.
Em Paris, Lapouge costumava frequentar o restaurante La Gauloise, na avenida de La Motte-Picquet, vizinho de onde ele morava. Gostava de levar colegas brasileiros ao lugar, onde por vezes até encontrava o ex-presidente francês François Mitterrand, outro apreciador do local. Gazzi lembrou que o colega francês não era fã da feijoada brasileira. Mas, durante uma visita ao Brasil, hospedado na casa do amigo, “comeu e disse que gostou”.
“Ensaísta, jornalista apaixonado pelo Brasil, Lapouge era um viajante elegante e provocador. Acima de tudo, um grande escritor. Seu trabalho premiado é preenchido com (histórias de) piratas, memórias de sonhos, selvas e paraísos perdidos”, disse Valérie Dumeige, que foi editora do escritor na Éditions Arthaud.
“Os teólogos geralmente aconselham a morrer antes de entrar no paraíso, mas alguns preferem criar pequenos paraísos imediatamente para aproveitar as delícias do belo jardim durante sua vida”, escreveu Lapougeno livro Atlas de Paraísos Perdidos. “Essa frase resume exatamente o que o Gilles era”, afirma Valérie. “Na França, todos admiravam Gilles e você só podia vê-lo depois que ele escrevia sua coluna. Ele impressionou a todos nós com a beleza de sua alma, seu humor e sua elegância. Ele era um viajante, foi para a África com seus filhos há dois anos. Para nós, é uma árvore enorme e bonita que acaba de ser derrubada”, continuou a editora.
Sobre a viagem à África, Mathilde Garro Lapouge, sua filha, conta que chagaram a dormir em uma barraca no deserto. “Nós fizemos uma viagem de carro com um 4x4 por uma semana. Papai, Jérôme e eu, em 2018. Saímos de Dakar, capital do Senegal, e subimos até fronteira da Mauritânia, no norte. Nós dormimos em uma barraca no deserto. Papai ria sempre porque dizia que essa tinha sido uma das melhores noites que ele passou em anos. Depois, dormimos nas margens do Rio Senegal para ver pássaros migrando. Ele andou de canoa para ver os pássaros e os crocodilos.” O jornalista tinha 94 anos na ocasião.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.