Em reação ao endurecimento de regras que impõem a volta ao trabalho presencial, um grupo de juízes passou a colher assinaturas para uma “carta aberta” que defende o descumprimento de determinações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e dos Tribunais a respeito do tema. Os magistrados pretendem fazer uma manifestação em frente à sede do colegiado, em Brasília, e estudam judicializar normas que restringiram o teletrabalho após a redução drástica de casos de covid-19. Este movimento já preocupa ministros das Cortes Superiores e conselheiros do CNJ, que avaliam abrir uma apuração disciplinar sobre a conduta dos envolvidos.
A carta, que tem sido compartilhada em grupos de magistrados no WhatsApp, não tem um autor declarado. As assinaturas são mantidas em segredo por seus organizadores. O grupo se denomina “Respeito à Magistratura” e afirma ser integrado atualmente por 800 juízes estaduais, federais e trabalhistas.
O manifesto foi elaborado coletivamente por seus participantes. O grupo afirma ter deliberado por “orientar” que se deixem de cumprir “atos administrativos manifestamente ilegais que violem a Lei Orgânica da Magistratura”. O manifesto fala ainda em “direitos e obrigações não previstos em leis, como apresentação de escala, frequência ou obrigatoriedade de modalidades de audiências”.
O Estadão apurou que um dos juízes que integra o grupo é Farley Roberto Rodrigues de Carvalho Ferreira, responsável pela 71ª Vara do Trabalho de São Paulo. Ele confirmou à reportagem a existência da articulação e disse que “qualquer manifestação do grupo somente será realizada após a adesão mínima de 500 juízes”.
Professor e ex-presidente da Associação de Magistrados do Trabalho de São Paulo (Amatra-2), Farley já defendeu publicamente o trabalho remoto da categoria ao menos em duas oportunidades. Uma delas é um artigo publicado na edição do dia 1º de março da revista eletrônica Consultor Jurídico (Conjur). O magistrado afirma que o teletrabalho tornou a magistratura “mais produtiva” e critica abertamente o CNJ pela determinação de retorno ao trabalho presencial.
No dia 16 de fevereiro, ele publicou nas suas redes sociais uma foto de uma sentença prolatada às 4h30 da madrugada. “O Judiciário não é um prédio, é um serviço”, escreveu Farley.
No formulário do “Respeito à Magistratura”, os magistrados dizem “denunciar” que a independência funcional foi violada pelo CNJ “ao exigir, de forma linear e sem observância das peculiaridades inerentes às mais diversas características de cada jurisdição, uma agenda de comparecimento dos magistrados à unidade jurisdicional”.
Os juízes afirmam no documento que vão acionar suas associações de classe para contratar advogado e enviar um parecer a respeito do assunto ao Supremo Tribunal Federal (STF). Há menção à possibilidade de mover ações na Corte contra tais atos administrativos, caso não haja uma solução “negociada”. Os juízes ainda mencionam a convocação de “assembleias regionalizadas para debater possível alerta de paralisação dos serviços judiciários”.
O Estadão apurou que a carta chegou à cúpula do Poder Judiciário, e é vista com preocupação por ministros das Cortes Superiores e conselheiros do CNJ. O manifesto divide opiniões dentro do Judiciário e ainda não se sabe se vem de um grupo isolado ou se haverá adesão expressiva.
Na visão do desembargador Carlos França, presidente do TJ Goiás e do Conselho dos Presidentes dos TJs, o grupo é uma minoria diante dos mais de 15 mil membros do Judiciário no Brasil. “O magistrado tem que estar na comarca, conhecer a sua unidade judiciária, conviver com a sociedade local, estar disponível para falar com advogados e para audiências na sua comarca”, pondera o desembargador. “Ele (o juiz) representa o Estado naquela localidade.”
Questionada pela reportagem, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), maior entidade representativa da classe, defendeu “um modelo híbrido, que leve em consideração as particularidades de cada região do País e permita que a tecnologia seja usada em favor do cidadão e para dar eficiência à Justiça”. A Associação também afirma que não se podem desconsiderar “avanços imprescindíveis como a celeridade, a desburocratização e a economia”.
Em novembro de 2022, o CNJ aprovou uma resolução determinando a retomada presencial das atividades em 60 dias úteis, prazo encerrado em fevereiro deste ano. Advogados chegaram a reclamar de fóruns esvaziados e da dificuldade de conversar presencialmente com magistrados, uma das prerrogativas da categoria.
No acompanhamento do retorno aos tribunais, o CNJ recebeu denúncias – inclusive da OAB – e constatou em correições a ausência de juízes em fóruns, o que prejudica a população que não tem condições de acessar canais de atendimento remoto.
Nas últimas semanas, por outro lado, o CNJ tem verificado que, de maneira geral, a volta ao presencial tem sido efetiva na maior parte das varas. De acordo com o conselho, 96,01% dos magistrados e magistradas e 82,77% dos servidores e servidoras estão trabalhando, de forma presencial, nos tribunais do País.
Outros casos
Outros juízes vieram a público criticar o retorno à modalidade presencial. A Amatra-1, do Rio de Janeiro, divulgou uma nota nesta terça, 14, sobre o pedido de aposentadoria feito por Monica de Almeida Rodrigues, que esteve à frente da 5ª Vara do Trabalho do Rio.
De acordo com a entidade, a magistrada fez uma carta afirmando que não há condições de segurança e tecnologia para que o trabalho possa ser desempenhado de forma presencial. “Exigem escalas dos dias em que estaremos nas varas, divulgando previamente sem observar a segurança, e buscam meios de exigir a certificação de que, de fato, realizamos as audiências da unidade judiciária”, queixou-se a juíza aposentada.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.