O Senado aprovou nesta terça-feira, 7, o projeto que estabelece a Lei Orgânica das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros. O texto, que agora segue para sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), revoga um decreto de 1969, publicado durante a ditadura militar no Brasil, que rege até hoje o funcionamento das polícias militares e dos corpos de bombeiros.
O projeto de lei foi apresentado há mais de duas décadas. Foi protocolado na Câmara em 2001 e é de autoria do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). A proposta ficou parada e foi aprovada na Casa no dia 14 de dezembro de 2022, sob relatoria do deputado Capitão Augusto (PL-SP).
No Senado, a tramitação foi mais rápida. Sob regime de urgência, o projeto passou pelas comissões de Constituição e Justiça e de Segurança Pública antes de ir ao plenário. O relator, Fabiano Contarato (PT-ES), costurou um acordo com os parlamentares para rejeitar as emendas que não fossem apenas de atualização da redação da proposta.
Com isso, o texto aprovado segue para sanção presidencial sem ter que passar pela Câmara de novo. Se receber o aval de Lula, a Lei Orgânica começará a valer a partir da publicação.
No entanto, a combinação fez com que o projeto fosse aprovado com alguns pontos sensíveis, que podem ser objeto de veto presidencial. O mais polêmico é a vedação de manifestações político-partidárias, até mesmo em redes sociais.
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Contarato também enumera outros itens, como a possibilidade de nomeação de peritos ad hoc (escolhidos para um ato específico), a possibilidade da criação de uma ouvidoria federal independente das ouvidorias dos Estados, a criação de oficiais temporários e a possibilidade de permuta entre as polícias de Estados diferentes sem anuência dos governadores.
O senador defende que a proposta precisava ser aprovada para que as normas reguladoras das carreiras fossem adequadas à Constituição de 1988. “Hoje, a PM do País está vinculada ao AI-5 (por causa do decreto 667, de 1969, que reorganizou as polícias e os bombeiros). É necessário haver uma adequação com o Estado Democrático de Direito”, defendeu o petista, se referindo ao Ato Institucional nº 5, de 1968, considerado o decreto mais duro da ditatura.
Várias carreiras têm leis orgânicas, como a magistratura. O objetivo desse tipo de norma é fixar princípios, diretrizes, competências e atribuições gerais. Regras mais específicas continuam sendo de responsabilidade dos Estados.
Esse, inclusive, é um dos pontos que não foi alterado pela proposta aprovada nesta terça. O projeto de lei inicial desidratava o poder dos governadores sobre as polícias dos Estados, mas o item foi retirado do texto para agilizar a tramitação.
Veja a seguir o que mudará com a nova Lei Orgânica das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros:
Manifestações político-partidárias
Um dos pontos mais sensíveis da nova Lei Orgânica é sobre a vida político-partidária dos militares da ativa. Além de proibir que eles tenham filiação, a legislação aprovada nesta terça restringe qualquer manifestação de tom político.
O texto proíbe policiais e bombeiros militares de participarem, “ainda que no horário de folga, de manifestações coletivas de caráter político-partidário ou reivindicatórias, portando arma ou fardado” e veda manifestações públicas, inclusive em redes sociais, a respeito de “matéria de natureza político-partidária”. Isso não vale para quem está na reserva.
Participar de atos, passeatas, manifestações, presencial ou virtual, também ficará proibido. O número de policiais militares que se candidatou a algum cargo cresceu 120% desde que o projeto de lei foi apresentado, em 2001. Só de 2018 para 2022, as candidaturas de PMs cresceram 39,41%.
Na avaliação de Contarato, as restrições de filiação partidária e de manifestação pública têm grandes chances de serem vetadas pela Presidência. “Esses pontos estariam violando permissões expressas na Constituição Federal”, disse o senador. A livre manifestação de pensamento e o exercício dos direitos políticos são, na lei brasileira, direitos fundamentais.
Afastamento para concorrer às eleições
A Lei Orgânica aprovada nesta terça aprofunda as regras que já existem na Constituição para militares candidatos a algum cargo eletivo. Hoje, a lei diz que quem tem menos de dez anos de corporação fica afastado durante o pleito, enquanto quem tem mais que dez é agregado – um tipo de inatividade específico da carreira militar. A eleição leva o PM para a reserva.
A nova lei deixa explícito que só os agregados recebem remuneração enquanto concorrem às eleições e só eles, quando eleitos, recebem uma aposentadoria proporcional ao tempo de serviço por irem para a reserva, cumulativa com o salário do cargo eletivo. Quem tomar posse como suplente também vai para a reserva, mas precisa optar entre a remuneração da nova função pública e a aposentadoria proporcional.
Divulgação de imagens de presos
Uma das adequações que a Lei Orgânica traz é a proibição de que policiais militares divulguem imagens de pessoas presas sem autorização judicial. Apesar de isso já ser proibido por outras legislações – Código Civil e Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) –, o fato de constar na Lei Orgânica possibilita que os agentes sejam enquadrados em alguma penalidade administrativa se praticarem o ato.
Tatuagens aparentes
Na parte das “condições básicas para ingresso” na carreira, consta a proibição de tatuagens visíveis que tenham ilustrações “de suásticas, de obscenidades e de ideologias terroristas ou que façam apologia à violência, às drogas ilícitas ou à discriminação de raça, credo, sexo ou origem”.
Essa é uma questão que não é pacificada e provoca embates em concursos públicos. Em 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que tatuagens, por si só, não impedem o ingresso de aprovados em carreiras públicas. Mesmo assim, alguns casos ainda precisam ser levados à Justiça. Em 2017, um ano depois, o ministro Dias Toffoli reintegrou ao cargo um PM reprovado no exame de saúde por ter uma tatuagem aparente na parte interna do bíceps.
Proteção aos direitos humanos
Na nova Lei Orgânica, a proteção aos direitos humanos – tanto os constitucionais quanto os que estão previstos nos tratados internacionais que o Brasil assina – passa a ser um dos princípios institucionais das PMs, previsto no artigo terceiro da norma.
Cota para mulheres
Os próximos concursos para ingresso nas polícias militares e nos bombeiros terão que ter, no mínimo, 20% de mulheres. Na nova lei, esse percentual precisa ser observado no preenchimento das vagas, e não no edital. Contarato diz que esse percentual “não é um teto, é um mínimo” e tem por objetivo uniformizar a tratativa que as polícias dos Estados têm em relação ao ingresso de mulheres.
No último dia 27, o concurso para policiais militares do Distrito Federal foi suspenso pelo ministro Cristiano Zanin, do STF, por causa da cota para mulheres. O edital previa que houvesse no máximo 10% de mulheres aprovadas. O certame só continuou depois que a regra foi alterada, para que os 10% fossem o mínimo.
Bancos de dados
Uma das criações da Lei Orgânica é uma base de dados unificada. Hoje, como as polícias militares são subordinadas aos governos estaduais, isso não existe. Na hipótese de sanção, esse banco de dados precisará ser organizado por lei complementar.
Condições especiais de prisão
Na nova Lei Orgânica, agentes da PM ou do Corpo de Bombeiros alvos de mandado de prisão têm o direito de ficar detidos em “unidade militar estadual”. Na prática, isso significa que em vez de irem para uma carceragem comum, podem ficar na carceragem dos batalhões.
Assistência jurídica e atendimento prioritário
Se forem acionados na Justiça por causa de infrações que decorram do exercício da função, membros das polícias militares terão direito à “assistência jurídica perante qualquer juízo ou tribunal”. O funcionamento disso terá que ser detalhado nas leis estaduais. As PMs podem criar seu próprio quadro jurídico ou estabelecer convênios com outras entidades públicas ou privadas.
De acordo com a nova Lei Orgânica, se forem vítimas, os PMs terão preferência de atendimento no Ministério Público, na Defensoria Pública, no Poder Judiciário e nos órgãos de perícia criminal.
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