Lembranças da tortura e da matança do regime militar esbarram na decisão de Lula de ignorar 1964

Estado brasileiro demorou a reconhecer crimes praticados por agentes do regime e, apesar de esforços de comissões criadas para esclarecê-los no passado, atual governo prefere evitar o tema para estabilizar relação com militares

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Foto do author Monica  Gugliano
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Em um segundo, o senhor de cabelos grisalhos, pele bronzeada e que não aparenta ter pelo menos 80 anos, se levanta da cadeira, onde até aquele momento tomava placidamente um cafezinho em uma xícara de porcelana. É um homem grande, deve medir mais que 1,80 metro. Eu que continuo sentada, portanto, pareço menor ainda. Ele me interpela e diz: “Então você não acredita que Herzog (Vladimir) se suicidou? Mente quem diz que ele foi assassinado”, afirma, subindo o tom de voz, o general reformado Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército no governo de José Sarney, e um dos mais influentes militares de sua geração.

Herzog (1937-1975) foi encontrado morto em sua cela. “Não houve tortura no Doi-Codi. E esse caso, desse rapaz, eu mesmo investiguei no II Exército. Ouvi todos os depoimentos sobre o que aconteceu e todos me falaram que ele se suicidou”, afirmou. Seguindo na conversa, acabou por conceder, ao menos genericamente e com ressalvas, o reconhecimento de tais práticas. “Houve alguma coisa. Você sabe como é. Sabe que não controla a raça humana, mas não entendo essa insistência com esse assunto. Eles (a esquerda) também mataram e sequestraram”, disse o primeiro ministro do Exército pós-ditadura, que viria a falecer em 2015.

Leônidas Pires Gonçalves rechaçava a tortura de Vladimir Herzog, morto por agentes do regime em 1975 Foto: Celio Jr./Estadão

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Estávamos, no momento daquela conversa, já no segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o terceiro presidente eleito pelo voto popular com a redemocratização, depois de Fernando Collor (que deu vaga a Itamar Franco após um processo de impeachment com tentativa de renúncia) e Fernando Henrique Cardoso, que também teve dois mandatos. Antes deles, o Brasil ainda teve o governo de outro civil: José Sarney, substituto de Tancredo Neves, eleito na última eleição indireta, mas que faleceu antes de tomar posse. E, mesmo assim, após anos de estabilidade democrática, os horrores promovidos pela ditadura continuavam a ser negados por antigos apoiadores daquele regime.

A realidade, porém, era implacável. Diretor do jornalismo da TV Cultura, no dia 24 de outubro de 1975, Herzog foi levado para prestar esclarecimentos na sede do DOI-CODI sobre suas ligações com o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Foi torturado e morto. Os militares disseram que ele teria se enforcado com o próprio cinto e divulgaram a foto do suposto enforcamento do jornalista que se tornou um símbolo da tortura. Jornalistas presos no DOI afirmaram que ele foi assassinado. Mas isso só foi reconhecido em março de 2013, muitos anos depois de a Justiça ter condenado a União pela prisão ilegal, tortura e morte do jornalista. No atestado, passou a constar que “a morte decorreu de lesões e maus tratos sofridos durante o interrogatório em dependência do II Exército”.

O caso de Herzog, embora um dos mais ruidosos e que ampliou a pressão que levou ao fim do regime militar, foi apenas um dos que duas comissões investigaram. Em 1995, primeiro ano do governo de Fernando Henrique Cardoso, foi sancionada a Lei 1.949, que foi a base para definir todo o processo de reconhecimento da responsabilidade do Estado Brasileiro pelas graves violações de direitos humanos e crimes praticados por agentes da ditadura. No dia 4 de dezembro daquele ano foi instituída a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos.

Entre outras atribuições, as investigações da comissão deveriam permitir que as famílias dos mortos e desaparecidos recebessem o atestado de óbito dos familiares. “Hoje, como chefe de Estado e de Governo – eleito pelo povo – e como comandante supremo das Forças Armadas, cabe a mim assumir pelo Estado a responsabilidade das transgressões cometidas à Lei e aos direitos humanos. (...) Dói-me até hoje a perda de Rubens Paiva. Dói-me o sorriso triste de meu ex-aluno Vladimir Herzog. (...) Culpado foi o Estado por permitir tortura em dependências suas. (...)”, justificou FHC.

O jornalista Vladimir Herzog foi um dos torturados e mortos no período ditatorial Foto: Reprodução/Acervo Estadão

Nas páginas dedicadas à Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos no portal do governo federal, consta o registro de 364 desaparecidos políticos, com seus nomes completos. Mas a comissão, que fazia parte do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), foi extinta em dezembro de 2022, no apagar das luzes do governo Bolsonaro. Em janeiro de 2023, logo após a posse do novo governo Lula, o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, prometeu recriar a comissão.

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Entretanto, até agora, Lula tem evitado tocar nesse assunto. De acordo com pessoas próximas ao ministro da Defesa, José Múcio, o governo está empenhado em apaziguar a relação com os quartéis e acredita que este não é o melhor momento para instalar a comissão. Ele se refere à tentativa de golpe levada a cabo pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, segundo investigações que estão no Supremo Tribunal Federal (STF). Mas, se a decisão de Lula – que proibiu qualquer menção aos 60 anos do golpe – agrada aos militares, desagrada profundamente organizações de direitos humanos e familiares dos mortos e desaparecidos.

“Essa medida não tem o menor sentido. O passado existe, sofremos um golpe e temos que aceitar as consequências dele”, diz o advogado José Carlos Dias, que foi um dos membros da Comissão Nacional da Verdade e hoje faz parte da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos D. Paulo Evaristo Arns. Dias ressalta que é preciso contar para as futuras gerações o que aconteceu e diz que a Comissão Arns não deixará passar em branco a decisão de Lula de não recriar a comissão. “Vamos pedir uma audiência ao presidente para mostrar-lhe a importância de fazer a comissão funcionar novamente. Só quando todos esses crimes forem esclarecidos a sociedade será pacificada”, afirma.

Em 2012, a presidente Dilma Rousseff comprou uma de suas principais brigas com os militares ao criar a Comissão Nacional da Verdade. Eles consideraram esta comissão um ato revanchista e reclamaram que a Lei da Anistia perdoou tanto os crimes cometidos por militares como também os de autoria de grupos guerrilheiros. Na cerimônia, no Palácio do Planalto, estavam presentes todos os presidentes pós-ditadura militar. Dois anos depois, o relatório, dividido em três volumes, foi entregue à presidente. Neles, estão registrados 434 mortos e desaparecidos políticos que têm reveladas sua vida e as circunstâncias de sua morte, “tragédia humana que não pode ser justificada por motivação de nenhuma ordem”, como afirma a apresentação do relatório final da CNV.

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