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À margem da História

Opinião | Amazônia tornou-se brasileira há 200 anos, sem se libertar de amarras coloniais

Na manhã de 21 de outubro de 1823, mais de 200 soldados simpatizantes da causa da independência do Brasil, em Belém, foram mortos no porão de um navio pela própria tropa brasileira encarregada de expulsar os portugueses

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Foto do author Leonencio Nossa
Atualização:

Havia quase um ano da independência do Brasil. A Amazônia ainda permanecia sob o poder dos portugueses, uma área que atualmente representa mais da metade do território nacional. No Pará, província mais influente da região, as elites militar e civil, ligadas a Lisboa, resistiam às ordens de Dom Pedro. Só faziam negociações comerciais com a antiga metrópole. Aliás, os ventos do caminho marítimo para a Europa eram mais favoráveis que os da rota do Rio de Janeiro, agora sede do novo império nos trópicos.

Pedro apostava na contratação de mercenários ingleses, veteranos das guerras contra Napoleão, para derrotar as forças de Portugal e expandir o Império por toda a Bacia Amazônica. No começo de julho de 1823, a esquadra e o exército montado por europeus e brasileiros conseguiram expulsar a autoridade portuguesa na Bahia. A meta seguinte era anexar as províncias mais do Norte ao país independente. A Coroa, no entanto, resistia.

Almirante John Pascoe Grenfell em desenho a lápis de Antonio Raphael Pinto Bandeira Foto: Acervo Biblioteca Nacional/Reprodução

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Em agosto daquele ano, um jovem inglês de 22 anos, John Pascoe Grenfell, ancorou seu barco no Porto de Salinas, em Belém, para intimar as autoridades da província nomeadas pelo governo português a aderirem ao Império do Brasil. Num blefe, ele disse que uma esquadra estava a poucos quilômetros da costa, preparada para uma invasão da cidade.

Grenfell não precisou sair de seu camarote para destituir a Junta Governativa formada apenas por portugueses. Camadas populares e também profissionais liberais e negociantes de uma elite nativa acompanharam com expectativa a destituição do antigo governo. Quando finalmente o mercenário pisou em terra firme e ocupou a província, os brasileiros de Belém tiveram uma amarga surpresa. O oficial inglês formou uma nova Junta e pôs apenas portugueses nela.

Uma ilustração da cidade de Belém, em 1825, publicada em obra dos naturalistas Spix e Martius. Foto: Spix

A revolta começou. No dia 16 de outubro, soldados dos regimentos de infantaria e cavalaria se juntaram a moradores da cidade numa manifestação popular contra Grenfell. Era início de um quebra-quebra. Uma multidão saiu pelas ruas destruindo e saqueando os comércios dos portugueses. Em poucas horas, a força liderada pelo mercenário cercou e prendeu revoltosos.

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Um dia depois, Grenfell escolheu de forma aleatória cinco presos e decidiu executá-los no largo do palácio do governo. Estava decidido a dar um exemplo aos críticos, amedrontar a população e evitar novos protestos.

No dia 20, a tropa do inglês transferiu 256 prisioneiros da cadeia pública para os porões do brigue Palhaço, uma embarcação ancorada na baía de Guajará. O espaço era reduzido. Só uma pequena fresta permitia a entrada de ar naquele lugar fétido e inadequado para abrigar mais de duas centenas de homens.

Pelos registros de tropas desse tempo, é possível afirmar que os prisioneiros eram europeus pobres, indígenas, negros e mestiços, integrantes da base da estrutura social da província.

A noite seria de agonia. Diante do desespero dos prisioneiros que se acotovelavam no porão do barco, os sentinelas jogaram água sobre eles. A água era disputada com socos pelos detidos.

Os vigilantes ficaram atordoados com os gritos e os barulhos de brigas vindos do porão do brigue. Os guardas deram tiros para dentro do navio. Mas o desespero só aumentou. Foi quando os soldados jogaram cal virgem nos presos. Lentamente, as vozes dos homens diminuíram e um silêncio predominou na calada daquela noite. Houve ainda registro de que uma tina com veneno foi colocada na prisão.

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Com o dia claro, os soldados abriram as escotilhas. O cenário era de horror. Apenas quatro corpos ainda tinham sinais de vida. Logo depois, arrastaram para fora os prisioneiros que pareciam ter batimento cardíaco. Somente um deles escapou da morte. Grenfell argumentou que não deu ordens para ninguém jogar cal no porão do brigue.

Naquela manhã de 21 outubro de 1823, há exatos 200 anos, os brasileiros da Amazônia conheceram o lado mais sombrio do Estado que nascia. As demandas sociais da população que vivia nas suas cidades e florestas não faziam parte do projeto de nação decidido pelos poderes político e econômico concentrados no Rio.

Depois que os corpos dos mortos foram jogados numa vala comum, longe dos olhares dos moradores da cidade, a revolta popular com a tragédia do brigue Palhaço reacendeu o estopim da campanha pela independência — não aquela liderada por Dom Pedro — em aldeias e comunidades ribeirinhas do Tapajós, do Tocantins e do Amazonas. A guerra nativa tinha demandas próprias. Mais tarde iria eclodir a Cabanagem, a maior das insurreições da região. Era uma luta que atravessaria o Império e chegaria à República.

Alguns historiadores insistem na versão de que a guerra da independência foi apenas uma disputa de grupos influentes do Brasil e de Portugal, uma refrega provocada pela crise fiscal e econômica do Estado absolutista português e de sua Colônia, ou coisa parecida. Um mergulho na História Brasileira a partir do seu interior, no entanto, mostrará que a luta pela independência foi uma convergência de batalhas por direitos civis, como o fim da escravidão, a igualdade de tratamento dos cidadãos, o combate à pobreza e a maior diversidade nas representações políticas.

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Ao longo de dois séculos, o poder central, no comando de imperiais ou republicanos, sempre manteve uma política de desenvolvimento que tratou a Amazônia como uma terra distante, certo de que as matanças de reação a suas medidas não comoveriam a opinião nacional predominante. A região nunca deixou de ser tratada como um lugar de saque, de uma existência atrelada à obrigação de garantir, sem contrapartidas e compensações, a madeira, o minério, as terras para a agricultura e o gado e a energia dos rios. Nem mesmo quando esteve disposta a aderir a processos liderados por forças externas, como foi o caso da independência, a população do Norte ganhou espaço.

Usina hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, construída no período da ditadura militar. Foto: Beto Barata/AE

Foi assim nos muitos projetos e políticas de desenvolvimento elaborados pelo Império, pela Primeira República, pelo Estado Novo, pela ditadura militar e pelos governos democráticos. As grandes obras de hidrelétricas e estradas dos militares, o PAC de Dilma Rousseff e a tentativa de destruição dos órgãos de fiscalização ambiental por Jair Bolsonaro para passar a “boiada” de aliados são histórias de uma República Federativa que adota práticas de colonialismo dentro do próprio País - a qualidade de vida da população da Amazônia quase nunca importa. É claro que a política anti-indígena e contra comunidades ribeirinhas tradicionais de Bolsonaro foi além.

Mesmo os ciclos econômicos concentraram riquezas e deixaram apenas ruínas. Do período da borracha ficaram alguns palácios em Belém e Manaus, que, no final do século XIX e início do XX, rivalizavam pelo posto de Paris dos trópicos — atualmente, a capital do Pará conta com 1,3 milhão de habitantes, e a do Amazonas, 2 milhões, e enfrentam desafios urbanos dramáticos. O ouro encontrado a céu aberto em Serra Pelada, nos anos 1980, não deixou nem isso. Agora, a robusta produção de minério de ferro mantém-se em alta, mas ao redor de Carajás estão cidades com elevados índices de pobreza.

Opinião por Leonencio Nossa

Editor de especiais do Estadão. Mestre em história e política. Autor dos livros “As guerras da Independência do Brasil”, “Roberto Marinho, o poder está no ar” e “Mata! O Major Curió e as guerrilhas no Araguaia”. Escreve aos sábados.

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