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À margem da História

Opinião | As boas coisas da vida no tempo dos linchamentos virtuais

Ler clássicos e lançamentos recentes da literatura brasileira é uma boa ideia para iniciar o Ano Novo

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Foto do author Leonencio Nossa
Atualização:

As revistas populares costumam publicar listas de perguntas em que celebridades expõem seus gostos. Quase no final da vida, Rubem Braga resolveu responder perguntas que ele mesmo fez logo depois de folhear uma dessas publicações. O maior cronista brasileiro de todos os tempos fez um exercício para lembrar e observar as coisas prazerosas da vida, sempre levando em conta a simplicidade.

A lista de Rubem Braga era, na verdade, a afirmação de uma obra marcada por registros de situações banais do cotidiano, lembranças da infância e descrições do mar. Ele viveu anos numa cobertura de um prédio na Rua Barão da Torre, em Ipanema, onde mantinha um jardim e um pomar. Procurou recriar, no agitado Rio de Janeiro, não necessariamente o tempo de menino, mas cenas do mundo que gostava de lembrar.

Praia da Costa, em Vila Velha, no Espírito Santo, no trecho do antigo trampolim, hoje em ruína Foto: Leonencio Nossa

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Agora, em tempo de internet, quando se confunde a vida aqui fora e aquela lá de dentro das redes sociais, a tentativa de elaborar uma relação de prazeres talvez exigirá o registro de situações próprias de uma realidade híbrida.

Em sua lista, o mestre da crônica citou o prazer de comer um aipim, perceber que o velho amor se transformou numa amizade e tocar bola com trabalhadores que se divertem na rua na hora do almoço. Rubem Braga sugeriu, sobretudo, que cada leitor pode e deve fazer sua própria lista de situações que podem resultar em pequenas alegrias. Só não vale citar coisas que exigem muito dinheiro ou dependem de outras pessoas.

A crônica “Coisas que fazem a vida valer a pena” foi publicada pelo Estadão a 25 de agosto de 1987. No ano seguinte, o texto saía no livro As boas coisas da vida. O cronista morreu dois anos depois.

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Hoje, essa crônica de um tempo sem internet, sem celular, vale muito como inspiração, ou simplesmente para não esquecermos de tornar o dia a dia mais agradável, menos pesado. Afinal, tem hora que cometemos o risco de acreditar que o universo das redes sociais é o único lugar habitável.

Rubem Braga na varanda de sua cobertura, em Ipanema, no Rio. FOTO DIVULGAÇÃO Foto: undefined / DIV

Ler a obra de Rubem Braga e fazer uma lista adaptada ao tempo atual também podem ser consideradas algumas dessas coisas simples e boas da vida.

Como qualquer leitor, tenho minha lista. Só não sugiro que as pessoas fujam por algumas horas do seu mundo real e virtual para não correrem o risco de virar meme.

Li outro dia na internet que um homem resolveu “fugir” da família e dos amigos e, antes de 24 horas do “sumiço”, o seu caso já estava em sites e blogs de sua cidade. Ao voltar para casa, o sujeito precisou dar explicações não apenas à família, mas às redes. Gravou, coitado, um vídeo em que disse constrangido que, por conta da chuva, demorou mais a chegar. “Não esquentem, está tudo bem”, disse. Veja, leitor, agora, a gente, mesmo sem ser uma celebridade, precisa dar satisfações ao monstro das redes.

Uma possível lista de coisas boas nestes tempos de linchamentos virtuais:

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- Recordar uma cena boa do passado da família e colocar no grupo de WhatsApp justamente quando os parentes estiverem se atacando por causa de um político qualquer. E perceber, depois, o silêncio de todos diante da troca repentina de assunto.

- Responder mensagens de carinho recebidas por conta de um post publicado nas redes, e deixar sem resposta um comentário indigesto. O silêncio nos faz um bem danado e pode deixar o outro perplexo.

- Não entrar nas ondas de linchamentos nas redes. Por mais que alguém tenha registrado uma visão da vida e da política que você discorde ou cometido uma falha, o melhor é não seguir a multidão na caça, no julgamento e no cancelamento. O influenciador que instiga a turba costuma se vestir de analista, mas o que faz é propagar intolerância.

- Num almoço ou jantar no bom restaurante, observar que, em momento algum, a companhia tirou o celular do bolso. E quando ouviu o aparelho tocar ela desligou antes de atender .

- Comprar uma camisa que você deseja há tempo, usar a peça na primeira oportunidade, sorrir diante do espelho, tirar uma selfie e postar.

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- Ignorar o “conselho” de influenciadores que propõem o cancelamento da assinatura de um jornal ou revista. Essa turma costuma só considerar o que ela pensa, ignora o sentido de uma democracia.

- Num domingo de manhã, encontrar na praia da infância, a poucos metros da areia, a pedra com a ruína daquele trampolim perigoso, onde os mais velhos se lançavam na água. O mar é uma das poucas coisas que nos dão uma sensação de eternidade, que tanto nos faz falta. É preciso observar que a intolerância e as insanidades nas redes, ao contrário, se diluem no final do dia.

- Comprar um livro na forma de um tijolo, saborear a obra aos poucos, na cama ou no sofá, com uma barra de chocolate e um copo de água do lado.

- Passar algum tempo da tarde numa sorveteria com a criança. Lá, ela estará com uma mão na pazinha e a outra no pote do sorvete.

- Saber diferenciar veículos de notícias e sites especializados na vida alheia e contas de quem não apresenta o nome e o sobrenome, geralmente figuras que se apresentam como especialistas em tudo que está na tendência do dia, que vivem emburradas, com ódio de quem está do outro da política.

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- Sair da cama pela manhã com a façanha de ter trocado, logo que acordou, a leitura de posts no celular por um exercício do curso virtual da língua estrangeira.

- Encontrar a conta de um escritor ou escritora que você gosta muito no X, o antigo Twitter – a página tem pouquinho seguidor, longe de se igualar aos milhares que acompanham aqueles influenciadores “manés”.

Grande sertão: veredas, romance publicado em 1956 por Guimarães Rosa, é considerado um clássico da literatura universal Foto: Secult

- Achar num sebo uma edição antiga do Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, em perfeitas condições. É do autor mineiro a frase que poderia ser mantra nestes tempos: “Felicidade se acha é em horinhas de descuido” - está no conto “Barra da vaca”, de Tutaméia, de 1967, último livro que publicou em vida. A propósito, no Grande sertão, o jagunço Riobaldo nos mostra que é preciso olhar mesmo para o futuro, pois “para trás, não há paz”, ele ensina. Talvez o que se vê no retrovisor é o ódio.

- Fazer uma longa viagem de ônibus e, numa parada de madrugada, comprar um pão de queijo e uma bebida quente.

- Planejar a compra de bilhetes aéreos para o Rio – isso também está na lista de Rubem Braga.

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- Andar sozinho e sem rumo pelo centro de qualquer cidade, parar na primeira padaria que exibir um doce muito amarelo no balcão.

- Sair à tarde para uma caminhada e perceber com muito alívio que, lá na rua, as pessoas não estão falando nem pensando naquela polêmica que te consumiu horas na internet.

- Ficar dias sem precisar ler comentários de exaltação a um governo ou a um líder da oposição.

- No dia seguinte à derrota de seu time, lembrar de momentos bons que o futebol já te proporcionou com amigos e parentes. É preciso não dar importância para aquele colunista que se acha dono do mundo. Em algum momento, ele já revelou torcer para outro clube.

- Resgatar a cultura do controle remoto. Antes das redes sociais, a gente trocava de canal quando não curtia um filme. Se não gostar de um post, basta passar para outro, sem necessidade de fazer comentários que possam ferir alguém.

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- Trocar a leitura de influenciadores de renome, que só dão opinião, por repórteres que ganham a vida contando fatos. Eu poderia citar centenas – prefira jornalista que publica histórias de pessoas e lugares em vez daquele que confunde reportagem com vídeo de TikTok, em que se apresenta como o próprio personagem da história.

- Saber que aquele conhecido que publica posts com alertas de “urgente” ou “atenção” entrou em merecidas férias.

A coletânea de narrativas curtas Ana à esquerda, do poeta Antonio Carlos Secchin, descreve personagens fortes de um mundo fragmentado e uma literatura em mutação. Foto: Martelo

- Mergulhar na ficção contemporânea que ajuda a entender a História do País. Ler Ana à esquerda, narrativas curtas sobre personagens intensas da complexa realidade brasileira, de Antonio Carlos Secchin, O crime do Cais do Valongo, uma volta ao passado histórico, de Eliana Alves Cruz, e Pontos de fuga, relato de uma geração que viveu a ditadura militar, último romance de Milton Hatoum.

- Encontrar Ruy Castro numa livraria e pedir um autógrafo. Então, ele escreve no exemplar de A vida por escrito, ciência e arte da biografia: “Aqui estão todos os meus segredos”. Mas você sabe que a cada livro o cronista do Rio se renova.

- Entrar no site de livros usados e comprar de uma vez só clássicos que, lidos, tornam-se capitais eternos: São Bernardo, de Graciliano Ramos, os romances da série O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, Água funda, de Ruth Guimarães, Chapadão do Bugre, de Mário Palmério, O tronco, de Bernardo Élis, A hora da estrela, de Clarice Lispector, Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e Fogo Morto, de José Lins do Rego.

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- Saber que você tem a coleção completa dos livros sobre a ditadura escritos por Elio Gaspari, base para entender o que ocorre hoje e ocorrerá amanhã.

- Antes de começar assistir a um vídeo que prega um verdadeiro sermão sobre política ou religião ou que mostra o lado ruim de uma pessoa, entrar no site de música e procurar aquela canção que você mais escutava antes dessa conversa de redes sociais.

- Por telefone, zap, pessoalmente ou numa conta nas redes, desejar um Feliz Ano Novo a alguém que receberá os votos com certa surpresa. A propósito, é o que desejo, amigos e amigas que acompanham esta coluna. Um 2024 leve, prazeroso e de muita leitura a todos.

Opinião por Leonencio Nossa

Editor de especiais do Estadão. Mestre em história e política. Autor dos livros “As guerras da Independência do Brasil”, “Roberto Marinho, o poder está no ar” e “Mata! O Major Curió e as guerrilhas no Araguaia”. Escreve aos sábados.

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