Tempo de repressão. Um grupo de militantes do Partido Comunista do Brasil, o PCdoB, foi convidado pelo regime de Mao Tsé-Tung, nos anos 1960, para treinar guerrilha na Academia Militar de Pequim. Num idioma e numa cultura completamente diferentes, os brasileiros tiveram mais aulas de política internacional que de tiros e emboscadas. O anfitrião liderara, décadas antes, uma Longa Marcha a partir do interior chinês e vencera uma guerra civil que implantou o comunismo.
Na volta ao Brasil, os militantes seguiram para o Bico do Papagaio, na divisa do Pará com o norte de Goiás, hoje Tocantins, para combater a ditadura militar. Ali, na confluência dos rios Araguaia e Tocantins, na chamada Mesopotâmia Brasileira, o partido criou três pequenas comunidades. Cada uma com pouco mais de 20 integrantes e o intuito de convencer caçadores, agricultores, pescadores, barqueiros e catadores de coco a aderir à luta armada até atingir os grandes centros, numa guerrilha maoísta.
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Pequim não formou homens para guerra na selva. Nem a ditadura tinha agentes para isso. O Araguaia foi um conflito assimétrico, de um lado civis e do outro as Forças Armadas. Eram cerca de cem guerrilheiros, entre militantes das cidades e camponeses. O Exército montou a primeira operação em abril de 1972, mas saiu de lá sem liquidar o movimento. Voltou em setembro. Sem sucesso. A cúpula militar e o Palácio do Planalto organizaram uma operação de inteligência de mapeamento da área antes de uma terceira campanha.
Após recolher dados de agentes disfarçados, o Exército iniciou em 1973 a ofensiva final com homens preparados em Manaus. No Natal daquele ano, o chefe político da guerrilha, o ex-deputado federal Maurício Grabois, quase sem enxergar, foi morto por paraquedistas. A biografia dele, feita dentro do partido, registra um equívoco em sua primeira edição ao dizer que a infantaria o teria matado. O livro ainda registra que o comunista nascido em Campinas era de Salvador. A obra erra no nascimento e na morte do personagem. Leitor de Albert Camus, Grabois preferia o Estadão às publicações comunistas para se informar. Merecia um perfil decente, tipo tijolaço.
A guerrilha brasileira mais bem estruturada, hoje é preterida pelos intelectuais de esquerda em detrimento dos grupos urbanos da luta armada. O grupo apostou num movimento de foco, que começava justamente onde a ditadura iniciava o “Brasil Grande”. A região no sudeste paraense foi demarcada como área de segurança nacional. Lá estavam o canteiro das obras da Transamazônica, as pesquisas da Vale sobre a potencialidade de minério de ferro e o projeto de Tucuruí. Mais alguns anos surgiria o garimpo de Serra Pelada, um formigueiro humano que ajudou a pagar a dívida externa enquanto o Projeto Carajás não vingava.
A Vale faria pesquisas para explorar ferro numa área de cerca de 900 mil quilômetros quadrados, 25 vezes o território da Ilha de Formosa, onde está Taiwan, parte da antiga China que Mao não conquistou totalmente.
O apoio da China à guerrilha começou a se esfacelar quando os diplomatas do país procuraram o Itamaraty para abrir mercado. Em 18 de abril de 1974, a ditadura ainda caçava guerrilheiros na floresta quando o ministério enviou ao Conselho de Segurança Nacional (CSN) pedido de “imediata” reconsideração das relações do Brasil com a República Popular da China. Por essas coisas da vida, o secretário do CSN era o general Hugo Abreu, que acabara de voltar do Araguaia onde tinha chefiado as primeiras operações contra a guerrilha.
O movimento armado no Araguaia e a prisão de nove chineses que estavam no Brasil, ainda em 1964 para uma exposição comercial, eram argumentos apresentados pelos militares para o País manter-se afastado da “potência emergente”, como destacou a Ata da 37ª Reunião do Conselho, guardada no Arquivo Nacional, em Brasília.
Ao defender a reaproximação, um parecer do Itamaraty citou Maurício Grabois como integrante da “subversão” que tinha a República Popular da China como influenciadora, mas destacou que os chineses se comprometeram a não interferir na política interna. “Até recentemente, o principal argumento contra o estabelecimento de relações diplomáticas com a R.P.C. se inspirava não só em considerações de fundo ideológico, como também em razões de segurança nacional”, argumentou o chanceler Antônio Azeredo da Silveira, o Silveirinha. “A esse respeito, peço vênia para ponderar que a praxis chinesa certamente desaconselharia, depois de 1969, o reinício de atividades subversivas que, no passado lhe acarretaram prejuízos tão desastrosos.”
Com a visita de Richard Nixon a Pequim, em fevereiro de 1972, países aliados de Washington correram para reatar relações com os chineses. Em agosto de 1974, o general Ernesto Geisel, que ocupava a Presidência, e 20 ministros consideraram que o restabelecimento diplomático traria “vantagens”.
O estudante capixaba José Maurílio Patrício e a estudante mineira Walquiria Afonso Costa estavam vivos na mata do Araguaia. Seriam executados em outubro por ordem expressa do Planalto.
Geisel dobrou os demais generais para compor com a China, uma relação interrompida após o golpe contra João Goulart. Foi o primeiro dos presidentes brasileiros que pautaram a política com Pequim por meio de discursos chauvinistas.
Os chineses se tornaram compradores de grãos e, sobretudo, do minério de Carajás nos anos 1980. Mas, na relação com o Brasil, Pequim sem o dogmatismo de Mao Tsé-Tung, morto em 1976, limitou-se à compra de commodities e a respostas afáveis e nada concretas às demandas brasileiras nos fóruns internacionais.
Em 1984, João Figueiredo foi o primeiro presidente a ir a Pequim. Fez papel de mascate do então chamado “Terceiro Mundo”: procurou vender minério, celulose e até barragens. No ciclo democrático, José Sarney viajaria para lá quatro anos depois, repetindo o roteiro de vendas.
Na década seguinte, Fernando Henrique Cardoso daria início à tradição de pedir apoio da China à entrada do Brasil no Conselho de Segurança da ONU em troca de defesa de alguma posição polêmica de Pequim – o governo chinês informou que ele defendeu, em uma visita em 1995, a política de direitos humanos do país, marcada pelo massacre da Praça da Paz Celestial e pela repressão a dissidentes. O tucano fez malabarismo para dizer que não foi bem assim.
Ter assento permanente no Conselho de Segurança significa poder de barganha em outras áreas. A questão é que os cinco membros do órgão devem ser unânimes à ampliação do grupo, e não houve registros de que a China tentou convencer os norte-americanos, em especial, a aumentar o número de cadeiras.
Pequim pôs crianças com bandeirinhas e soldados em traje de gala para recepcionar Luiz Inácio Lula da Silva (em 2004, 2008 e 2009), Dilma Rousseff (2011), Michel Temer (2016 e 2017) e Jair Bolsonaro (2019). Justiça seja feita, Bolsonaro foi o único visitante que não fez discurso de chefe de superpotência. Mas excedeu no viralatismo por interesse pessoal.
Distante de questões diplomáticas e do papel de candidato à presidência de um país parceiro comercial da China, copiou Donald Trump no uso de bobagens contra a China para ganhar seguidores nas redes. Ainda na campanha, esteve em Taiwan para irritação de Pequim. Até a ditadura militar havia deixado de reconhecer a autonomia da ilha reivindicada pelos comunistas chineses.
Eleito, Bolsonaro viajou a Pequim. A retratação não impediu que o Itamaraty gastasse tempo para acalmar os chineses diante de postagens da família. O deputado Eduardo Bolsonaro, o filho 03, escreveu que a China espalhou a covid de propósito - no passado, a ditadura inventou que os nove chineses expulsos do País tinham montado um esquema para aplicar vacinas contra a gripe contaminadas. No caso de Eduardo, o embaixador chinês respondeu que o parlamentar contraiu “vírus mental”.
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Em 2022, o último ano do governo Bolsonaro, o investimento chinês no Brasil teve queda de 78% em relação ao ano anterior. A economia da China também desacelerou, mas, em tempo de pandemia e guerra na Ucrânia, registrou aumento moderado de importações. Os especialistas creditaram a queda na compra dos produtos brasileiros à falta de interesse de Bolsonaro em fazer negócios por meio de blocos comerciais, à prioridade de Pequim em investir numa economia verde e a problemas isolados na área da mineração.
Foi em troca da promessa chinesa de apoio a um assento no Conselho de Segurança que Lula numa viagem a Johannesburgo, agora em agosto, aceitou abrir o grupo dos Brics a outros países.
Agenda presidencial
Longe de uma questão de diplomacia internacional, o presidente Lula se negou a receber, na última quarta-feira, irmãs de guerrilheiros mortos no Araguaia. Elas estiveram no Planalto para lembrá-lo, mais uma vez, que os corpos não foram entregues. Trata-se de um caso de humanidade, direito e afeto. Fizeram um protesto na Praça dos Três Poderes e aproveitaram para lembrar também de assassinatos recentes, como do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, no Vale do Javari, no Amazonas, em 2022, um dos pontos atuais da violência na floresta.
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