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À margem da História

Opinião|Falsos brilhantes querem calar Elis Regina

Polarização une de elite uspiana a redes sociais na ofensiva de afastar maior cantora do País das novas gerações e impor o silenciamento de uma voz que nem a ditadura conseguiu

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Foto do author Leonencio Nossa
Atualização:

Tem muita gente influente disposta a convencer os brasileiros que o comercial da Kombi é uma mera publicidade predatória que não respeita nem a memória de quem partiu, nem o patrimônio musical. Há quem aposte num debate ideológico tendo como base argumentativa uma visão elitista ou única da história recente, do País ou das pessoas.

Nos últimos dias, a cantora Elis Regina voltou a esquentar a opinião pública por conta da sua aparição por meio de recursos de inteligência artificial em comercial da Volkswagen. Não se tratou de uma aparição qualquer. A artista surge ao lado da filha, Maria Rita, que a perdeu quando tinha apenas quatro anos Qualquer encontro assim causa emoção, marca. E era isso que pretendiam os diretores da campanha.

A imagem de Elis Regina foi recriada digitalmente para dueto com sua filha, Maria Rita, em comercial da Volkswagen Foto: Reprodução/Youtube/Volkswagen do Brasil

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É claro que cultura, publicidade e sentimentos imbricados tornam complicado um debate. Mas vale nesse caso da Kombi observar nuances, ter empatia, enxergar memórias encobertas. Não há apenas uma História, mas várias memórias. A Kombi pode não ser somente o passado de uma empresa e sua diretoria. Trabalhadores da fábrica de São Bernardo do Campo talvez não aceitem que os personagens mais importantes da História sejam os patrões - ainda que em papéis incômodos -, que eles, os peões, não sejam a Volks.

A memória afetiva trabalha com a mistura de fatos e situações muito antes do debate necessário, sem dúvida, sobre inteligência artificial.

Elis ensaia em São Paulo, em 1973. Ainda naquela década, ela participaria de um show para arrecadar fundos para o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Foto: OSVALDO LUIZ/ESTADÃO. Foto: ESTADAO CONTEUDO / ESTADAO CONTEUDO

O comercial pode tirar dos baús pessoais narrativas diversas. Um aposentado do ABC falará de Elis e da Volks quase como imagens indissolúveis de um épico e lembrará daquele show da cantora no estúdio da Vera Cruz, em São Bernardo do Campo, no distante 1º de maio de 1979, em apoio ao Sindicato dos Metalúrgicos.

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Uma família irá recordar da Kombi que o pai usava para transportar verduras até a feira e, nos domingos, levar os filhos à praia.

Um homem buscará na estante o fusquinha vermelho com sirene de bombeiros que pertenceu ao menino. Os roteiros das lembranças atendem o gosto do freguês.

Mas na academia e nas redes teve quem enxergou no comercial uma profanação da memória de Elis. Um colega na imprensa reclamou que a “alma do negócio” não respeita as demais. Eles não conseguiram ver a emoção de Maria Rita por cantar junto com a mãe, e que a Kombi torna-se um detalhe.

É preciso darmos uma volta pelo sertão do Brasil, sem pressa. Na viagem, pediremos licença para entrar na casa de um sitiante. Na sala, não será preciso solicitar um cafezinho. Com a xícara na mão e leveza, perguntaremos sobre o quadro na parede, entre estampas de santos. É o retrato de um ente querido, pintado de forma rudimentar, numa composição com imagens de vivos. Não é uma fotografia real – na visão de quem entrou pela primeira vez na residência.

Nesse país desconhecido, as famílias se acham no direito de peitar a morte, o destino, a tragédia. Insistem que o parente está nesta dimensão e não distante. Maria Rita, filha de uma celebridade, talvez também tenha o direito de fazer esse enfrentamento. O amor de uma filha não pode ser visto como algo distorcido.

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De repente, o Conar proibirá Elis de vender carros - ou voltar ao mundo dos vivos e contar sua história. Assim, nessa linha de argumento, muitos não saberão da artista fichada nos anos de chumbo e que depois cantou o hino nacional numa festividade dos militares, e surpreendeu a resistência. Nem da mulher que denunciou o sumiço do pianista Tenorinho na Argentina da ditadura. Também não se falará da voz de “O bêbado e o equilibrista” que saía das caixas de som dos aeroportos na chegada de Brizola e Arraes do exílio. Ainda será proibido contar o que Elis foi fazer no ABC.

Ciclo das greves dos metalúrgicos do ABC, em São Paulo, impulsionou redemocratização do País. FOTO REGINALDO MANENTE/AE Foto: AE / AE

Chico Buarque de Holanda escreveu a canção “Linha de Montagem” para o documentário homônimo, de 1982, sobre o ciclo de greves dos metalúrgicos na redemocratização do País. No documentário, a multinacional não aparece como protagonista. Quem aparece em destaque é o trabalhador da montadora. Daquele movimento sairia o maior líder popular da História do Brasil. No vídeo do show promovido pelo Sindicato dos Metalúrgicos, a cantora interpreta “O Rancho da Goiabada” junto com João Bosco.

Não se trata de desqualificar o debate sobre limites da publicidade, mas levar em conta a memória afetiva. Também vale observar que clássicos da música, do cinema e da literatura costumam ser releituras.

Há tempo que a história oral e a memória coletiva afloram no debate acadêmico. A historiografia mais clássica nada perdeu.

A propósito, a elite uspiana não é de dar bola para historiadores e jornalistas que, Brasil afora, se dedicam às pesquisas sobre a ditadura no campo e na cidade – há exceções, claro. Quem é do ramo sabe disso. Muitos pesquisadores da Guerrilha do Araguaia, por exemplo, nunca foram chamados para um cafezinho na universidade.

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Aliás, uma ressalva no debate é a situação das famílias dos mortos pela máquina da repressão, que nunca tiveram direito à memória. Elas e o País querem saber mais sobre a rede de apoios da ditadura.

Não faltam boas ações para esclarecer o elo de multinacionais ao regime autoritário. Em 2020, a Volkswagen teve de assinar Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público Federal por envolvimento com a ditadura. Mais recentemente, um grupo de pesquisadores da Unifesp diagnosticou a postura de empresas no período.

Os choques entre camadas de memórias não encobrem histórias. A coexistência de variadas memórias nos ajudam a compreender o que somos. O despropósito é entrar num debate para vencer, para derrotar o olhar do outro que não é nem mesmo um contraponto.

Dogmas ideológicos, uso da cultura e macro política à parte, talvez não seja prudente deixar de observar a força da emoção provocada pela memória do outro ou da gente, individual, própria, confusa. Não é o caso de pedir respeito a uma família, mas à memória de uma família, o que é algo mais complexo.

Alguém tem dúvida que a polarização facilitará em 2026 a vida dos outsiders que têm apenas a credencial da esperteza de entender a memória afetiva do brasileiro? É hora de olharmos para a Kombi com problemas que vai, num domingo de sol, pelo acostamento, cheia de meninos dentro, pela margem da História.

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Opinião por Leonencio Nossa

Editor de especiais do Estadão. Mestre em história e política. Autor dos livros “As guerras da Independência do Brasil”, “Roberto Marinho, o poder está no ar” e “Mata! O Major Curió e as guerrilhas no Araguaia”. Escreve aos sábados.

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