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À margem da História

Opinião | Massacre do Paralelo 11 marcou há 60 anos o início do Brasil Grande na Amazônia

Em novembro de 1963, um grupo financiado com recursos federais invadiu o território dos cintas-largas que viviam entre Rondônia e Mato Grosso para “limpar” a área

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Foto do author Leonencio Nossa
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Eram mais que obras de engenharia. No final dos anos 1950 e começo da década seguinte, as construções das rodovias Belém-Brasília e Cuiabá-Porto Velho iniciavam um novo momento da presença do governo brasileiro na Amazônia. Uma novidade diferenciava o Plano do Brasil Grande, do presidente Juscelino Kubitschek, dos ciclos econômicos do passado na região. Agora, JK abria as portas dos bancos de fomento para incentivar a exploração da floresta e garantir parcerias do Estado com o setor privado, mas sem estipular limites a práticas de violência.

A política de reocupação do interior do Brasil ficou visível no Plano de Metas apresentado pelo presidente ainda na campanha presidencial de 1955. A ideia era expandir frentes econômicas e construir uma malha rodoviária dos grandes centros à Amazônia. A Marcha para o Oeste de Getúlio tinha empacado no Planalto Central.

Um cinta-larga anos depois do massacre. Foto do antropólogo Jesco von Puttkamaer. Arquivo Funai. Foto: Jesco von Puttkamaer/Arquivo Funai

No projeto de Juscelino estavam Brasília, no coração de Goiás, e rodovias que chegavam a lugares da floresta até então de acesso limitado aos rios. A Belém-Brasília, a atual BR-153, era uma delas. Ligava Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul, à capital do Pará, um corte profundo no mapa do Brasil. A outra estrada era a BR-029, rebatizada de BR-364, mais conhecida como Cuiabá-Porto Velho. A capital do então território federal de Rondônia deixava de depender de voos para Manaus e da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, que vivia sua agonia, e a vizinha Vilhena virava, quase para sempre, terra da pistolagem.

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A Amazônia sentiria o impacto do avanço da urbanização e das novas frentes econômicas em suas bordas. As comunidades indígenas se depararam com as armas de fogo de alto calibre e exércitos milicianos formados por fazendeiros bancados pelos órgãos de fomento do governo federal.

Nesse tempo, empresários aproveitaram a farra do dinheiro público disponibilizado pelo governo para a Amazônia. Os seringalistas Antônio Mascarenhas de Junqueira e Hélio Palma de Arruda estavam nessa lista. Eles eram sócios da empresa Arruda, Junqueira & Companhia, que aproveitava o avanço das obras da Cuiabá-Porto Velho para entrar nas terras indígenas, forjar títulos de áreas, fazer grilos e explorar pedras. As aventuras deles eram bancadas pelo Banco de Crédito da Amazônia. Com recursos do banco, pagavam até mesmo os milicianos que faziam a vigilância do seringal montado por ele num território dos cintas-largas, em Mato Grosso.

No final de 1963, eles organizaram uma expedição para “limpar” uma área mais distante ocupada pelos cintas-largas nas cabeceiras do Rio Aripuanã, na divisa com Rondônia - por ali passa o paralelo 11 sul. Queriam estender suas terras. Uma parte dos recrutados foi enganada. O mineiro Ataíde Pereira dos Santos, que tinha sido recruta num quartel do Exército em Campo Grande, hoje Mato Grosso do Sul, resolveu aceitar o trabalho por pensar que se tratava de uma viagem de coleta de poaia, uma planta que dá em lugares úmidos usada pelas fábricas de xarope.

A expedição era chefiada por Chico Luís, homem de confiança do patrão, e pelos peões Ramiro, Manuel Rodrigues e Juscelino, todos de boa pontaria. O grupo saiu em canoas de um seringal entre os rios Juinamirim e Juruena no rumo da aldeia dos cintas-largas. De lancha pelo Juruena, o grupo passou pela boca do Rio Sangue até atingir a localidade de Águas Bravas, onde o Juruena era mais revolto. Quando não havia mais condição de navegar, os homens entraram na mata densa, cortando um varadouro com facões no rumo da Serra Norte, que por ali chamavam de Morena.

Quanto mais o grupo avançava na mata, mais Ataíde percebia que o objetivo não era a busca de poaia. Afinal, o caminho era por floresta seca. Um dia depois de uma caminhada penosa, o chefe da expedição parou o grupo numa beira de rio e avisou: “O negócio aqui não é apanhar poaia. O negócio é caçar índio.”

Ataíde percebeu que tinha sido enganado. Chico Luís foi incisivo. “Quem aguentar vai, quem não aguentar passa para cá”, disse, separando a equipe.

Os cintas-largas enfrentaram o impacto da construção da Cuiabá-Porto Velho no final dos anos 1950 e começo dos 1960. Foto Arquivo Funai. Foto: Funai

Com uma bússola, o chefe da expedição abriu mato num pique de indígenas, no rumo da Serra Morena, cortando a mata e pequenos rios. Logo, atravessou o Juruena com seus homens. Após seis dias de caminhada, a comida acabou. Chico Luís resolveu parar numa velha roça dos cintas-largas, onde podiam comer batatas, inhames e palmito e caçar. Comentou que tinha matado muito indígena ali. Ninguém confiava em ninguém. Era preciso ficar de olhos bem abertos.

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Mais uma semana, um Cessna azul e branco sobrevoou a região. Era gente da fazenda, que tentava localizar o grupo na mata. A fumaça de uma fogueira restabeleceu o contato. Em novos voos, o avião jogou sacos de lona com feijão, carne seca, arroz, banha e sal. Jogou fumo de rolo, cigarros, remédios, cobertas e botas.

Entre os sacos, um encarregado de Junqueira, de nome Amorim, mandou bilhete. Chico Luís não sabia ler. Pediu a Juscelino que lesse a mensagem. Os cintas-largas estavam a poucos quilômetros, uns dois dias de viagem, escreveu o homem.

Era noite quando o grupo de Chico Luís avistou malocas do outro lado do Aripuanã, afluente do Madeira. Evitaram barulho e cigarro. Ficaram à espreita, esperando o amanhecer.

O cacique estava em cima de uma pedra orientando outros na construção de uma casa. A aldeia era nova, foi construída por sobreviventes de uma outra arrasada por seringalistas, mais acima do rio. O chefe disse a Ataíde: “Pode atirar que o resto eu garanto”.

Separados pelo rio, os homens passaram a noite em alerta. Atravessaram o curso quando não ouviram mais barulho de gente. E entraram atirando na aldeia.

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Chico Luís encontrou uma mulher cinta-larga com uma criança de dez anos numa trilha rente ao rio. A indígena se abaixou. O barulho de pi-ri-pi-pi, como eles se referiam à metralhadora, não foi suficiente para mãe e filho fugirem. Ela parecia estar sem forças.

O homem ficou irritado e a puxou pelo braço. “É preciso matar todas essas pragas”, esbravejou. A cena foi tão brusca que homens da expedição tentaram acalmá-lo. Ataíde propôs que ficassem com a mulher, pois era nova e bonita, e se Chico não quisesse, levariam para o Amorim, do seringal. “Quem quiser mulher que venha buscar mulher no mato”, respondeu o chefe.

A índia foi amarrada de cabeça para baixo, cada pé numa árvore da beira do rio, e cortada ao meio a partir do púbis. A História poderia tratar com ceticismo a cena de barbárie, que expunha a degradação humana em grau elevado. Mas os homens fizeram uma fotografia para congelar aquele momento. O menino levou um tiro na cabeça logo após a morte da mãe, porque chorava. Um silêncio dominava agora a aldeia destruída pelo grupo armado.

Pela estimativa da época, 15 cintas-largas foram assassinados, incluindo adultos e crianças. Depoimentos posteriores apontaram que a conta foi além.

Com a morte dos indígenas, Chico Luís deu ordem para seus homens deixarem a aldeia. A barbárie não demorou mais de uma hora. Um clima de ódio e fadiga tomou conta de integrantes da expedição matadora.

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O chefe do grupo mandou os homens jogarem os corpos da mãe e do menino no rio. Para completar o serviço, os jagunços atearam fogo nas malocas. “Ele era mau como um capeta”, contou Ataíde, num depoimento mais tarde aos repórteres Carlos Rangel e Jorge Peter, do jornal O Globo, profissionais que pela primeira vez contaram essa história, em fevereiro de 1966. No ano seguinte, o procurador Jader Figueiredo Correia começou a preparar um alentado dossiê, o Relatório Figueiredo, sobre violações de direitos humanos em territórios indígenas e trouxe mais detalhes do massacre que ficou conhecido como Paralelo 11. O documento foi recuperado, em 2013, pelo pesquisador Marcelo Zelic.

O grupo de matadores retornou à sede do seringal 68 dias depois da saída da expedição. O empresário Antônio Mascarenhas de Junqueira, o dono do seringal, considerou que o “serviço” não foi bem feito. Ele disse que teria lucrado mais se o Cessna jogasse bombas de dinamite - depoimentos posteriores apontaram que explosivos também foram usados contra os cintas-largas. Diante do patrão furioso, Chico Luís entregou um saco de pedras e terra coletadas na área do massacre. Era uma prova de que tinha estado no lugar.

É uma história esquecida de um Brasil sem alma, que viveu um refluxo no tempo. Seis décadas depois, indígenas da Amazônia, especialmente os isolados como os do Paralelo 11, continuam sob ameaça de uma ofensiva de frentes que não reconhecem a presença deles na terra. Quem invade e ataca costuma ser bem representado no Congresso e recebe bons financiamentos dos bancos federais.

Opinião por Leonencio Nossa

Editor de especiais do Estadão. Mestre em história e política. Autor dos livros “As guerras da Independência do Brasil”, “Roberto Marinho, o poder está no ar” e “Mata! O Major Curió e as guerrilhas no Araguaia”. Escreve aos sábados.

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