O escritor Domingo Sarmiento publicou, em 1845, Facundo, civilización y barbárie. O livro retrata uma Argentina dividida entre a cidade, civilizada, e o Pampa, violento. É a vida de um general e caudilho de La Rioja assassinado por inimigos. No Brasil, Os sertões, de Euclides da Cunha, mais de cinco décadas depois, descreve um massacre de sertanejos pelo Exército na Bahia e usa a mesma dicotomia para mostrar uma nação que pode rachar até pelo fato de uns viverem perto do mar e outros longe.
Os dois escritores tiveram destinos diferentes. Seus países, nem tanto. Num caso de crime passional, Euclides morreu anos depois. Por sua vez, Sarmiento foi eleito presidente, revolucionou o ensino argentino, criando colégios e bibliotecas. Ele deixou outro livro, de tom racista. O mandato dele, entretanto, ficou na História por elevar o ensino e serviu de marco para o início do período de ouro.
Esse tempo foi incrível. Entre 1870 e 1930, os portenhos tinham renda per capita maior que a dos norte-americanos. A exportação de produtos primários – grãos, lã, couro e carne bovina – atraiu banqueiros ingleses e artistas franceses e italianos. Toda companhia de ópera que se apresentava nessa época no Rio de Janeiro tinha interesse apenas em ganhar platas a mais em escala exigida pela longa travessia do Atlântico.
Mergulhada em dinheiro, a Argentina construiu estradas de ferro, viu chegar uma massa de imigrantes e cresceu. El Gran Apogeo encobriu a concentração de terra e as diferenças entre a elite agrária e as manchas urbanas.
Veio a Primeira Guerra: o mundo deixou de importar. Quando o conflito terminou, a cidade e o campo não se entendiam. Em 1919, o presidente Hipólito Yrigoyen reprimiu greves anarquistas em Buenos Aires, conquistou apoios e se afastou do setor rural que dominava o Congresso. Num segundo mandato, em setembro de 1930, um tenente-general, José Félix Uriburu, deu um golpe. “Isso marcou o final da época de ouro”, conta Eleonora Gosman, correspondente do jornal Perfil, maior conhecedora da relação entre os dois países.
O golpe de Uriburu selou uma aliança decisiva entre militares e o sempre influente setor agrícola, sem conexão com forças progressistas urbanas.
Menos de um mês depois, a troca de poder no Brasil foi ao contrário. A elite do café perdeu o poder para setores exportadores e industriais e um golpe pôs Getúlio Vargas no Palácio do Catete.
A Argentina das commodities e dos golpistas sofreu o impacto de mais uma Guerra Mundial. Em 1946, Juan Domingo Perón foi eleito. Também oriundo da caserna, ele buscou referências no fascismo de Mussolini. Mas é difícil dizer que fez um governo fascista.
O presidente adotou uma política econômica nacionalista que aproveitou a alta das reservas cambiais e o populismo. A figura da segunda mulher dele, Evita, ganhou contornos de santa. Começava assim o peronismo, movimento de massas e força política predominante.
Em setembro de 1955, Perón foi deposto pelo general Eduardo Lonardi, que, por sua vez, acabou derrubado pelo tenente-general Pedro Aramburu.
Em 1958, um civil foi eleito. Como Juscelino no Brasil, Arturo Frondizi desenvolveu a indústria automobilística e investiu em estradas e hidrelétricas, além da exploração de petróleo. Ele enfrentou seis tentativas de golpe e caiu em março de 1962. Dois anos depois, em outro março, o brasileiro João Goulart era derrubado - também pelos militares.
Perón voltou em 1973. Morreu menos de um ano depois da posse. Sua terceira mulher, a vice Isabelita, uma ex-dançarina, assumiu só para esquentar a cadeira para os generais, que dariam mais um golpe nove anos após a ruptura feita pelos militares brasileiros.
Durante a ditadura, entre 1976 e 1983, a Argentina ganhou uma Copa do Mundo e o regime fez uma guerra contra o Reino Unido, implantou uma máquina repressiva que resultou em 30 mil mortos ou desaparecidos políticos e criou um caos financeiro. Ao menos o sistema de ensino de Sarmiento continuava preservado.
Numa onda recente de protestos, em 2001, os argentinos gritaram “que se vayan todos” - “fora todos (os políticos)”. As batidas de panela resultaram em cinco presidentes em menos de duas semanas. Na sequência, vieram os governos de Néstor Kirchner e sua mulher, Cristina, peronistas, e, aqui, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, além de seus opositores. Se ouviria muita batida de panela nos dois países.
Agora, o extremista Javier Milei, um outsider, vencedor da eleição primária na Argentina no último domingo, uma prévia da disputa presidencial, capturou o grito de ordem. Milei adota o mecanismo que Steve Bannon usou com Jair Bolsonaro em 2018. “O processo é o mesmo. Quando se pensa em Brasil e Argentina, só é preciso saber quem vai fazer algo primeiro”, diz Eleonora.
Isso quer dizer o seguinte: se o pior vencer, terá dificuldades para preencher os cargos da máquina do governo e o país dependerá de nomes de quem o poder econômico escolher para os ministérios. Aqui, o Centrão governou para Bolsonaro, ganhou dinheiro e segurou arroubos. A medida “peronista” do Auxílio Brasil, aprovado por todos os campos políticos, ajudou brasileiros na pandemia - e garantiu Bolsonaro no segundo turno. No mesmo período, Messi enfim venceu uma Copa. Os estragos provocados pelo governo Bolsonaro em todo o tecido social, econômico e político ainda estão sendo contabilizados, mas são muitos.
Na Argentina, ao menos os militares não voltam – quiçá surpresas sanitárias. É algo novo que um extremista com chances reais de poder venha sem a companhia de generais. Há um consenso sobre o passado da ditadura. “Esqueça, os militares não existem”, afirma Eleonora.
Mas, além de disparar a metralhadora de olhos fechados, Milei tem o adicional de atacar o que sobrou do período de ouro: as escolas de Domingo Sarmiento.
O fim da educação gratuita não é bandeira só dele. É também da candidata de direita Patrícia Bullrich, ligada ao ex-presidente Mauricio Macri.
Há anos, Eleonora costuma ouvir de seus colegas pelo mundo a pergunta sobre o que ocorre na Argentina. Diante da eterna indagação, ela costuma ressaltar que os argentinos estão “mais uma vez” muito desiludidos. Eleonora prefere apresentar dúvidas que visões otimistas e fatalistas. Afinal, nas últimas décadas, brasileiros e argentinos vivem um tempo de decepção, mas também de democracia.
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