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À margem da História

Opinião | Nem todo o ouro roubado foi para Portugal, ministro Dino

O senso comum pode ser eficiente no debate das redes sociais, mas a ofensiva de combate à xenofobia e por uma História mais humana nas salas de aula e nos aeroportos exige muito mais

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Foto do author Leonencio Nossa

Nesta semana, o ministro da Justiça, Flávio Dino, disse que os brasileiros têm direito de invadir Portugal e receber de volta o ouro retirado de Minas no tempo da colônia. Ele comentava um vídeo nas redes sociais de uma brasileira que sofre ataque xenófobo, no aeroporto da cidade do Porto, por parte de uma mulher que se intitula “portuguesa de raça”, a chama de “porca” e reclama de uma invasão.

“Bom, se for isso, nós temos direito por reciprocidade, porque em 1500 eles invadiram o Brasil’, afirmou Dino. “Concordo até que repatriem os imigrantes que lá estão, devolvendo junto o ouro de Ouro Preto, e aí fica tudo certo, a gente fica quite.”

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A História aponta que nem todo o ouro roubado das minas foi embarcado para Lisboa. A Coroa Portuguesa pode construir palácios em Lisboa e pagar dívidas com os ingleses. Mas a exploração colonial estendeu ganhos numa rede econômica complexa, que beneficiou gente de um lado e outro do Atlântico.

O sistema colonial se apoiava na escravidão dos negros, no poder absolutista do Estado, na crueldade da Igreja Católica e na mão de ferro dos fiscais do Reino, tanto que não faltaram revoltas por liberdade. O que uma aula de História sobre a exploração de ouro no Brasil precisa contar também é que a produção de metais de Minas não ficou apenas nas mãos dos portugueses nem o colonialismo limitou-se a um período histórico. Ainda hoje, o mosaico de Brasis dentro de um único país mostra que injustiças e desigualdades regionais marcam o dia a dia dos brasileiros, isso mais de 200 anos após a emancipação.

O ouro mineiro não garantiu a Portugal reviver o fausto do período das navegações. Nessa época, os portugueses já eram dependentes dos ingleses, que por sua vez fariam a Revolução Industrial, mesmo que não fossem beneficiados pelos metais brasileiros, como de fato foram. A Inglaterra tinha uma agricultura forte, liberdade de pensamento, recursos acumulados para financiar um novo tempo e suas próprias colônias.

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Igreja de São Francisco de Assis, construída no tempo da mineração em Ouro Preto. FOTO RODRIGO AZEVEDO/DIVULGAÇÃO  Foto: RODRIGO AZEVEDO/DIVULGAÇÃO / DIV

É fato que o contato do europeu com arma de fogo e o indígena do litoral foi trágico, como afirma o ministro. Assim como não se pode dizer que tudo não passa de um vídeo na internet, um caso pontual. O que ocorreu no Porto foi um crime. Mas, voltando para a História do colonialismo, é difícil apresentar um levantamento exato de onde está o ouro de Minas para fazer a repatriação como propõe Flávio Dino.

O ouro pode estar no convento de Mafra que inspirou José Saramago, no legado da Revolução Industrial no Reino Unido, quem sabe num sistema econômico e monetário que não necessariamente tornou a vida de um lisboeta melhor. Pode ainda ter se diluído numa cadeia lucrativa dominada por poucos grupos mercantilistas da Europa. Estaria também no próprio Brasil - a propósito, o patrimônio histórico das cidades de Minas continua sendo dilapidado e o ouro, em forma de peças sacras, roubado por uma indústria criminosa, que envolve padres, falsários do Rio e São Paulo e gente graúda.

Riqueza e pobreza nos trópicos

A antiga Vila Rica foi uma espécie de Nova York do século 18. Mais de 600 mil pessoas viviam nas minas no auge da exploração de ouro. A América viu surgir um núcleo urbano globalizado, que crescia com suas igrejas e seu casario. Era tempo da explosão do barroco das esculturas de Aleijadinho, Ataíde e Mestre de Piranga, das pinturas chinesas das paredes dos templos, dos resquícios da Renascença europeia nos altares e da sensibilidade africana nas expressões dos santos. O lugar ia muito além de um posto de escala de colônia, embora com suas tragédias sociais.

Quando se recorre à História do colonialismo que falava português para comentar aberrações do presente, como é o caso da xenofobia enfrentada pelos brasileiros, há sempre o risco de não ponderar que dramas do passado sobreviveram ao domínio da Coroa lusitana. Uma sociedade injusta e autoritária se formou nas minas de ouro, expandiu-se com o gado nas terras em volta. A riqueza quase sempre ficou acumulada e o Estado, independente, não foi capaz de tornar sua distribuição mais ampla. Migrar é uma das muitas formas de resistência.

Desde o fim da Era Salazar em Portugal e da ditadura brasileira, os dois países desenvolvem uma relação política que inclui nações de língua portuguesa na África que enfrentaram, até os anos 1970, o sistema ultramarino. O próprio chefe de Flávio Dino, em seus governos anteriores, perambulou pelo continente africano para construir uma rede de nações de um idioma quase marginal nas relações internacionais e, assim, obter mais força nos fóruns. Talvez não seja uma História de êxitos diplomáticos, mas de interessantes posturas de governos. Afinal, solidariedade, doações, reparações e mesmo visões críticas do passado não são suficientes para combater práticas e modelos que persistem no tempo.

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Mineração em Ouro Preto. Pintura de Rugendas feita entre 1820 e 1825. Foto: Rugendas

É empolgante falar do ouro de Minas numa discussão de internet. Os debates instantâneos não comportam, porém, a História detalhada das grimpas que se exauriram e da imigração lusitana que continuou a ponto de Portugal tentar impedir o esvaziamento de seu interior e o embarque de gente para sua maior colônia.

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Ainda no século 20 uma onda de imigrantes portugueses chegou ao País. Fazer fortuna no Brasil ou em Portugal nem sempre esteve associado ao desejo da volta. O ser humano pode estar sempre disposto a recomeçar.

Nos debates das redes sociais, a História emerge sem complexidade, as narrativas engolfam especialmente autoridades que estão à frente de cooperações para a melhoria de vida de quem cruza o Atlântico. A nova safra de políticos pode usar as redes para influenciar – sem, claro, difundir o preconceito como recentemente fez um deputado extremista de direita e ignorante que chegou à Presidência.

Mas talvez seja responsabilidade da geração que se diz progressista propagar também a História dos encontros do ex-primeiro ministro e ex-presidente Mário Soares com os colegas brasileiros José Sarney, Fernando Henrique e Luiz Inácio Lula da Silva, do tempo de busca de intercâmbios contra o lado perverso da globalização vivido especialmente pelo imigrante de língua portuguesa e dos autoritarismos internos. A ofensiva para garantir melhores condições de estudo, trabalho e renda é lenta.

Intelectuais de Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Angola costumam observar quer, cerca de 50 anos depois da saída das tropas portuguesas, seus países repetem o modelo colonial. A situação não parece diferente onde a independência é mais antiga. Por sua vez, acadêmicos de Lisboa lembram que o país europeu ainda recorre a livros que desumanizam o indígena e o negro e consideram o sistema escravocrata e colonial inevitável. A busca para contar uma História que não seja a do descobridor é um desafio na antiga metrópole e nas ex-colônias, lugares que para um imigrante não têm fronteiras, são um único mundo, de um lado ou outro do oceano, tenso, solitário e de oportunidades restritas.

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Opinião por Leonencio Nossa

Editor de especiais do Estadão. Mestre em história e política. Autor dos livros “As guerras da Independência do Brasil”, “Roberto Marinho, o poder está no ar” e “Mata! O Major Curió e as guerrilhas no Araguaia”. Escreve aos sábados.

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