É um retrato raro de três personalidades da área indígena que só costumam aparecer com semblantes dramáticos. O sertanista Sydney Possuelo e as lideranças Raoni Metuktire e Davi Kopenawa estão abraçados e sorrindo na imagem que a ativista Rosita Mascarenhas Watkins, mulher de Sydney, registrou há poucos dias.
Na tarde da última terça-feira, 5, Rosita, de 64 anos, as filhas Karla, 47, e Michelle, 43, e o neto Noah, 10, viajavam de carro de Brasília para o Maranhão quando uma picape na contramão fez uma ultrapassagem irregular num trecho da BR-020, em Formosa (GO), e provocou a colisão do veículo que estavam com um caminhão. As três morreram no local. O menino está no hospital, perto de receber alta. Karla e Michelle eram enteadas de Sydney.
A fotografia do mais destacado sertanista da atualidade e das duas principais lideranças indígenas do País ilustra, na visão dos amigos, o papel que Rosita desempenhou na área. Desde o início da relação com Sydney, há sete anos, ela procurou levar conforto e leveza para um seleto grupo de ativistas da floresta que só colecionava dramas. Além das ações anti-indígenas do governo passado, o setor foi impactado pelas mortes do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips e de lideranças indígenas - parte delas pela violência, parte pela pandemia. Raoni, por exemplo, perdeu a mulher Bekwita, vítima da covid.
Foi diante de uma asfixia da área que Rosita procurou atuar. Em família, ela incentivava o trabalho do sertanista. Organizava o rico acervo do marido, procurava fazer pontes com a academia e trabalhava num documentário internacional sobre a vida dele. O apartamento do casal virou abrigo de indígenas em périplo por Brasília. “Eu estava mais quieto, recolhido, ela veio para mudar isso”, lembra Sydney, que presidiu a Funai nos anos 1990 e mudou a política de contatos com comunidades isoladas.
Rosita atuou por duas décadas na embaixada britânica em Brasília. Na cidade, desenvolveu um trabalho de ativismo social. “Ela se reinventou várias vezes”, observa Sydney. “Mãe jovem, promotora de eventos e projetos sociais, entrou na causa indígena, foi empresária, cuidava de uma família que só crescia: porque ela adotada todo mundo.”
O respeito e a admiração pela ativista pode ser evidenciada pelas manifestações e gestos de velhos amigos. Logo que soube da morte de Rosita, a fotógrafa queniana Margi Moss, do projeto Rios Voadores, pegou um avião na Suíça para Brasília. Raoni e outros líderes caiapós deixaram a aldeia Piraçu, no interior de Mato Grosso, de madrugada, para se solidarizar com a família.
No fim de semana, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, procurou confortar o amigo Sydney, em longa conversa. A presidente da Funai, Joênia Wapichana, foi uma das primeiras a divulgar nota sobre a “inestimável” perda.
A filha mais velha de Rosita, Karla, era formada em comunicação. Também se destacou no ativismo por direitos civis e humanos, além de desenvolver projetos voltados para mulheres nordestinas e negras. Por sua vez, Michelle estudou artes e design. Foi artista-educadora e professora.
“Rosita, Karla e Michelle deixam um legado que vai muito além de sua família e de seus amigos mais íntimos”, destacaram os parentes em nota. “Por meio de seu ativismo e de sua generosidade, elas tocaram a e continuam a tocar a vida de muitas pessoas.”
A família está divulgando uma mensagem recente de Rosita. Nela, a ativista pede recursos para a construção de um espaço destinado a mulheres e crianças vítimas de violência tocado pela Associação Cruz de Malta, entidade beneficente que mantém uma rede de creches nas cidades do Distrito Federal. “O espaço vai na perspectiva de reconstruir a dignidade, autoestima e cidadania”, disse a ativista na mensagem. (PIX: financeiro@cruzdemaltadf.org.br ).
Rosita e as filhas foram veladas na tarde deste domingo, na Capela 6 do Cemitério Campo da Esperança, em Brasília. Na terça-feira, a família e os amigos participam de uma celebração em homenagem a elas no Santuário Santo Antônio, na 911 Sul.
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