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À margem da História

Opinião|Presidente que perdoa golpista fica sempre na linha de tiro; as lições de JK a Lula

Juscelino Kubitschek enfrentou três tentativas de golpe. Ele ainda não tinha assumido o poder quando militares e políticos tentaram mudar as regras do jogo. O presidente apostou no perdão. Os golpistas voltaram a tentar derrubá-lo duas vezes do poder

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Foto do author Leonencio Nossa
Atualização:

Nas primeiras horas do dia 11 de novembro de 1955, o general Henrique Teixeira Lott pôs tanques e blindados nas ruas do Rio para frear um movimento de militares e civis que tentava impedir a posse de Juscelino Kubitsheck, eleito presidente no mês anterior. Sem saída, as lideranças do golpe embarcaram no cruzador Tamandaré, no cais da Marinha, rumo a Santos, onde pretendiam formar um governo paralelo.

O presidente interino da República, Carlos Luz, estava a bordo da embarcação. Ele tinha permanecido apenas três dias no cargo. O último presidente eleito, Getúlio Vargas, havia se matado, o vice-presidente, Café Filho, estava internado num hospital, e Luz, na condição de presidente da Câmara, assumira o poder.

Marechal Lott: o oficial ainda jovem, que não tinha habilidade política Foto: ECEME

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Tudo começou no início daquele mês quando Lott, então ministro da Guerra, foi ao enterro de um general. Lá, um coronel, Jurandyr Mamede, fez um discurso em defesa do golpe. Personalizada pelo histriônico Carlos Lacerda, a UDN se posicionava contra a posse de Juscelino, sob o argumento que ele não recebera a maioria absoluta dos votos – o que não era exigido pelas regras eleitorais.

Lott, então, procurou Café Filho para pedir a punição do militar, que, pelo regulamento disciplinar do Exército não podia fazer manifestações públicas. Contrário à punição, o presidente se afastou do Palácio do Catete, alegando princípio de enfarte. Carlos Luz assumiu. Os juscelinistas diziam que era jogo de cartas marcadas.

Agora, o general bateu na porta de Luz para voltar a pedir a punição de Mamede. O presidente interino aceitou mesmo a demissão do general. Lott foi para casa, mas na madrugada seguinte estava no comando do movimento que derrubou o governo.

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Juscelino Kubitschek Foto: Arquivo Estadão

Tiros de canhão foram disparados dos fortes do Leme e de Copacabana na direção do Tamandaré. Mas Lott tinha dado ordens para que o navio não fosse acertado. O barco não chegou a Santos. Voltou ao porto do Rio ainda na manhã do dia 13. Os golpistas reconheciam a vitória do general.

Essa história é contada no livro Lott, a espada democrática & outros escritos pacifistas, do jornalista e escritor Pedro Rogério Moreira, pela Thesaurus. Depois de ver as cenas de vandalismo do 8 de janeiro deste 2023, Pedro Rogério achou que valia a pena recuperar uma entrevista de seis horas que fez com Lott em 1978, ainda no tempo do regime militar. Assim surgiu a ideia do livro.

Diferentemente do que costuma ocorrer nas quarteladas, Lott não assumiu a República. Ele articulou a posse de Nereu Ramos, vice-presidente do Senado, que ficou até janeiro do ano seguinte, quando Juscelino assumiu.

Agora no poder, Juscelino enfrentou nada menos que duas tentativas de golpe. Em 1956, um grupo de aviadores da Aeronáutica sequestrou aviões e montou uma base rebelde em Aragarças, no interior de Goiás. Mais tarde, em 1959, quase o mesmo grupo sequestrou outras aeronaves e se refugiou em Jacareacanga, na selva do Pará.

Juscelino perdoou os participantes dos três golpes. Lott passaria a vida acreditando na eficácia do perdão para golpistas. Em 1964, tanto JK quanto o general foram perseguidos pela turma golpista, que desta vez teve êxito. Lacerda, que voltava a participar de uma conspiração, acabou expurgado pelos novos donos do poder.

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Nunca houve unanimidade no país das quarteladas em relação ao que fazer com quem atenta contra a democracia nos mais diferentes níveis, de agressões cotidianas no plenário da Câmara a um esquema robusto de tomada de poder. Sempre surge a reflexão sobre a necessidade do Brasil seguir em frente, enfrentar os desafios da economia e do social, coisas que realmente interessam.

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Nesta semana, o Conselho de Ética da Câmara arquivou processos de cassação dos deputados Nikolas Ferreira e Carla Zambelli. Nikolas respondia por um discurso cruel contra mulheres trans. Zambelli, por sua vez, usou palavras impublicáveis contra um deputado. O colegiado achou que era o caso de dar uma chance aos colegas. Ninguém saiu em defesa aberta dos deputados. É possível que houve uma certa consciência de que comportamentos hostis reduzem a qualidade da democracia e podem tornar inviável o funcionamento do Legislativo.

Risco maior corria Carla Zambelli. Ela ainda é cobrada pelos bolsonaristas por sair com pistola na mão atrás de um homem nas ruas dos Jardins na véspera do segundo turno das eleições. A atitude foi considerada imperdoável para quem perdeu a disputa por margem pequena de votos.

Ao longo da semana, as investigações sobre os atos antidemocráticos trouxeram mais indícios que Silvinei Vasques, ex-diretor da Polícia Rodoviária Federal, pôs mesmo em prática, no dia da votação, um plano de blitze nas estradas do Nordeste para impedir o trânsito em redutos de Lula. Com as urnas ainda abertas, muitos pediram o adiamento da votação por algumas horas. O então presidente do TSE, Alexandre de Moraes, manteve o horário e evitou um questionamento à lisura das eleições, que parecia ser o objetivo maior do esquema. A situação do ex-ministro da Justiça Anderson Torres não é menos pior. Ele é suspeito de participar da trama e ainda ter envolvimento explícito na tentativa de golpe de 8 de janeiro.

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Na semana, Moraes avisou que pretende começar a julgar, no próximo mês, as ações penais contra os réus envolvidos nas invasões das sedes dos Três Poderes em Brasília. São mais de 1200 pessoas.

É uma incógnita a situação no processo do ex-presidente que teve o retrato estampado na camisa de boa parte dos réus naquele 8 de janeiro. Seja lá qual for, a decisão sobre Jair Bolsonaro não será inédita em se tratando de um ex-presidente. Em 1955, Carlos Luz não sofreu represálias pelo envolvimento no movimento de ruptura. Já o Marechal Hermes da Fonseca, um dos envolvidos em uma outra tentativa de tomada do poder, a Revolta do Forte de Copacabana, no mais distante 1922, amargou seis meses de prisão.

Personalidades da caserna e presidentes de origem militar que desqualificam a democracia são recorrentes na História. Figura fora da curva mesmo foi Lott. Até hoje, o movimento chefiado por ele em 1955 rende debates. Uns observam que o general deu um golpe para evitar um maior. Outros argumentam que o militar consolidou a ideia de que o Exército é o guardião da democracia, um mantra na caserna. A favor dele está o fato de não colocar o próprio retrato na galeria de presidentes.

Na entrevista a Pedro Rogério, até então inédita, o general chegou a rir quando comentou sobre as críticas da extrema direita de que era um “comunista”. Moderado, continuava a defender o perdão aos golpistas. “Anistia é uma medida política. É o esquecimento. Não há vencido nem vencedor”, disse. O general morreu aos 89 anos, em 1984, convicto de que “O preço da liberdade é a eterna vigilância”, uma frase que gostava de citar de Thomas Jefferson.

A leitura do livro sobre Lott deixa claro que o general ao menos errou ao se render à política partidária. Isto ocorreu na sucessão de Juscelino em 1960 – foi derrotado pelo populista Jânio Quadros. Lott perdeu a chance de entrar para a História como alguém que apostava totalmente na ideia de que militares e quaisquer agentes do Estado devem ficar longe do poder político.

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Opinião por Leonencio Nossa

Editor de especiais do Estadão. Mestre em história e política. Autor dos livros “As guerras da Independência do Brasil”, “Roberto Marinho, o poder está no ar” e “Mata! O Major Curió e as guerrilhas no Araguaia”. Escreve aos sábados.

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