Nos últimos anos, com a proliferação de grupos e organizações identificados com o liberalismo, como o partido Novo, o Movimento Brasil Livre (MBL) e o Instituto Mises Brasil (IMB), a expressão “nova direita” ganhou os holofotes no País.
Mas, embora o uso do termo tenha se disseminado, muitas dúvidas ainda pairam sobre o seu real significado e sobre como, de repente, após um longo período de hegemonia da esquerda e da centro-esquerda, a direita ressurgiu das cinzas, com nova roupagem, para assumir um papel que parecia improvável até pouco tempo atrás.
Agora, um novo livro se propõe a esclarecer a questão e a desvendar o fenômeno que redesenhou o cenário político, surpreendendo analistas renomados, lideranças partidárias e “especialistas” em assuntos aleatórios que pontificam sobre o tema em tribunas virtuais.
Escrito pela cientista política Camila Rocha, de 37 anos, e intitulado Menos Marx, Mais Mises – O liberalismo e a nova direita no Brasil, o livro é candidato, desde já, a se tornar uma referência no assunto, não só pelo ineditismo de seu conteúdo e pela sólida pesquisa que o sustenta, como pela ponderação demonstrada pela autora em sua narrativa.
Apesar de se declarar de esquerda e deixar isso transparente desde o princípio, a autora tem o grande mérito de tratar a questão sem se deixar levar pelo preconceito ideológico que costuma permear, ainda que nas entrelinhas, as análises sobre a atuação da direita e dos liberais no País, em especial na academia.
“Não hesitei em confirmar minha inclinação ideológica (aos entrevistados), mas deixei claro que minha intenção era fazer uma pesquisa acadêmica séria e não escrever um panfleto político” afirma Camila, que hoje atua como assessora parlamentar da deputada estadual, Isa Penna, do PSOL, na Assembleia Legislativa de São Paulo, logo na introdução do livro.
Fundamentada em dezenas de entrevistas realizadas entre 2015 e 2018, que foram a base de sua tese de mestrado na USP e deram origem ao livro, a autora reconstrói a história do ativismo liberal no País e procura mostrar as diferenças existentes entre os grupos e as organizações que defendiam o liberalismo no passado e as suas encarnações contemporâneas. Procura apontar, também, as razões que levaram ao crescimento da nova direita e à adesão de quase todos os grupos que a compõem à candidatura do então deputado Jair Bolsonaro à Presidência, em 2018.
“Elitismo aristocrático”
Ao explicar a diferença entre a nova direita e a direita tradicional, Camila traça um paralelo com o surgimento da nova esquerda nos anos 1960, que agregou novos atores à ação política do grupo, “alargando os horizontes da velha luta de classes”. Na sua avaliação, a nova direita não tem vergonha de tornar públicas as suas preferências políticas, ao contrário da “direita envergonhada” que predominou no País após a redemocratização, a partir de meados dos anos 1980, “pautada em uma defesa algo hesitante do livre mercado e em um conservadorismo difuso”.
Em contraste com o “elitismo aristocrático" da direita tradicional, a nova direita reúne, em sua visão, “desde direitistas antigos até pessoas comuns e jovens oriundos da classe média e até das classes populares” e passou a se organizar em uma rede descentralizada, “composta de diversos grupos, movimentos, organizações, partidos, políticos, intelectuais e militantes”.
“É muito comum entre analistas políticos o uso de expressões como ‘direita radical’ ou ‘extrema di reita’ para se referir à nova direita, destacando sua continuidade com a direita atuante anteriormente e sua conexão, ou mesmo sinonímia, com o bolsonarismo”, diz a autora. “No entanto, ainda que de fato existam continuidades importantes entre ideias e personagens antigos e novos, acredito que ignorar as novidades e os tons de cinza da direita contemporânea é um obstáculo para uma compreensão mais aprofundada do fenômeno.”
Radicalismo de mercado
De acordo com Camila, foi o escândalo do mensalão, em meados de década de 2000, que impulsionou o debate das ideias liberais, especialmente em comunidades criadas no Orkut, a rede social do Google que precedeu o Facebook em termos de popularidade no Brasil, e o surgimento dos primeiros grupos organizados da chamada “nova direita”.
Depois, com o intervencionismo crescente dos governos do PT na economia, a Lava Jato e o movimento pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, os novos grupos se multiplicaram e conquistaram adeptos em progressão geométrica. O descontentamento com a atuação dos políticos identificados com o liberalismo e o conservadorismo, que pareciam fazer pouca ou nenhuma oposição ao lulismo, também deu a sua contribuição para o crescimento dos novos grupos, segundo a autora.
Para Camila, esse coquetel, temperado com a implementação de políticas identitárias e de liberalização de costumes, fortaleceu os grupos conservadores e pôs um ponto final na “hegemonia liberal-libertária” existente no período de formação da nova direita. Em seu lugar, foi se consolidando de forma progressivaum amálgama de ideologias políticas até então inédito no País – o “ultraliberalismo-conservador”, uma combinação de radicalismo de mercado e de conservadorismo programático, cujos objetivos são o combate à hegemonia de esquerda, que teria vigorado a partir da redemocratização, e o rompimento com o “pacto progressista” que resultou na Constituição de 1988.
Como afirma a autora no livro, embora a maior parte da nova direita tenha apoiado a eleição de Bolsonaro e defenda como ele o rompimento do “pacto de 1988”, o movimento representa um fenômeno político diferente do bolsonarismo. “Ainda que o bolsonarismo tenha se nutrido de ideias, de quadros e da mesma política de choque na esfera pública que caracterizou as atividades da nova direita, especialmente em suas origens, também foi capaz de manter sua independência ideológica e política”, diz. “Isso ajuda a compreender como, sem maiores explicações, vários personagens e movimentos da nova direita, como o MBL, afastaram-se de Bolsonaro nos dois primeiros anos de sua gestão.” De acordo com Camila, independentemente do rumo do atual governo, “a nova direita veio para ficar”.
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