A linguagem jurídica e a jornalística têm diferenças abissais. Enquanto a primeira necessita do rigor da escrita das leis – quase sempre incompreensível aos leigos – a segunda deve primar por ser a mais clara e simples possível, de forma a atingir e informar o maior número de pessoas. O ministro Luís Roberto Barroso, eleito presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), que tomará posse no próximo mês, em seu livro “Sem data venia, um olhar sobre o Brasil e o mundo” (História Real, um selo da editora Intrínseca), lançado em 2020, consegue desvendar os segredos do juridiquês com palavras e textos, revelando que erudição e simplicidade podem, sim, andar juntas.
Tirando o “data vênia”, a expressão latina muito usada nos tribunais pedindo ao interlocutor permissão para discordar de suas palavras, o livro, com 271 páginas – 13 delas de notas – é um mergulho nos temas que mobilizam a sociedade brasileira, as instituições, passado, presente e futuro deste país. De economia a meio ambiente; de corrupção ao famoso jeitinho brasileiro, é provável que o livro seja uma boa leitura para quem quiser conhecer as ideias do próximo presidente da mais alta Corte do País.
Ele não se furta nem mesmo de escrever sobre a descoberta de um adenocarcinoma, em 2012, cujo diagnóstico lhe foi dado com a sentença de que teria apenas mais um ano de vida e de como isso o aproximou da religião. “Embora não tenha escolhido uma religião específica, criado entre o judaísmo e o catolicismo, sempre fui uma pessoa de muita fé, mas distante desses temas. A partir desse episódio, vivi um processo profundo de espiritualização e incluí a meditação em minha rotina diária” (...) Com a doença em remissão diz: “Acostumei-me a não fazer planos mais do que três meses à frente (...)
Dividido em três partes, o livro abrange desde detalhes da vida pessoal de Barroso até às suas opiniões sobre questões que estão na pauta do STF, como a criminalização do aborto, ou que têm sido motivo para acalorados debates como a chamada judicialização da política. Fala da ditadura militar, já em sua vida adulta, da política estudantil na faculdade e da campanha pelas Diretas Já.
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No livro, o ministro analisa a redemocratização e diz que a Constituição de 1988 “(...) representa o ponto culminante dessa trajetória, catalisando o esforço de inúmeras gerações de brasileiros contra o autoritarismo, a exclusão social e a apropriação privada do Estado por elites extrativistas (patrimonialismo), estigmas da formação nacional – temas recorrentes e aos quais ele dedica capítulos específicos. Nem tudo foram flores, mas há muitas razões para celebrá-la”.
E aborda também a crise das democracias modernas, a revolução tecnológica e digital, o aquecimento global, a corrupção e a liberdade de expressão do ponto de vista do STF, em que cita decisões que a garantiram, inclusive reformando decisões de instâncias inferiores.
Ministro defende retirada do ‘presidente do varejo’ da política
Ao tratar a reforma política, Barroso afirma: “a experiência latino-americana com o presidencialismo à americana não tem sido boa, no geral. Tem oscilado entre o hiperpresidencialismo, com concentração de poder no Executivo e viés autoritário, ou o fisiologismo extremo, em que o presidente fica refém do Congresso e precisa entabular coalizões e negociações nem sempre republicanas”.
(...) a experiência latino-americana com o presidencialismo à americana não tem sido boa, no geral. Tem oscilado entre o hiperpresidencialismo, com concentração de poder no Executivo e viés autoritário, ou o fisiologismo extremo, em que o presidente fica refém do Congresso”
Ministro Luís Roberto Barroso, futuro presidente do STF
Ele defende um modelo em que o presidente seja eleito pelo voto popular, tenha competências importantes de Estado, mas não seja o responsável pelo varejo da política, que tocaria a um primeiro-ministro chancelado pelo Congresso. “(...)Normalmente seria um parlamentar, mas não obrigatoriamente. Em certas conjunturas, um outsider pode ter mais capacidade de obter consenso ou maioria expressiva. Como ele sempre poderá ser substituído, o poder remanesce com o Congresso”.
No Capítulo 2, o ministro observa que uma das questões mais “divisivas” nas sociedades contemporâneas diz respeito ao tratamento jurídico do aborto, “isto é, da interrupção voluntária da gestação por uma mulher”. Barroso lembra que “trata-se essencialmente de definir se ele deve ser tratado como crime ou não e afirma: “Quando o Estado opta por mandar a polícia, o promotor ou o juiz obrigarem uma mulher a permanecer grávida do filho que ela não quer ter – não quer porque, geralmente, não pode – viola uma série de direitos constitucionais (...)”.
Barroso também defende a legalização das drogas e cita o ex-secretário geral da ONU, Kofi Annan, segundo quem “as drogas já destruíram muitas vidas, mas as políticas equivocadas sobre drogas destruíram muito mais”. Para o ministro a política de enfrentamento às drogas que o Brasil pratica, baseada em polícia, armamento, mortes e muitas prisões não tem dado certo. O tráfico e o consumo, assinala Barroso, ao longo do tempo só aumentaram. Por fim, ele cita as finalidades visadas com uma política de legalização: “(...)quebrar o poder do tráfico; evitar a inútil superlotação dos presídios que destrói vidas, prejudica a sociedade e não produz qualquer resultado e permitir o tratamento dos dependentes pelo sistema público de saúde (SUS).
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Sobre os direitos LGBTIA+ e uniões homoafetivas, ele escreve que a “progressiva aceitação dessa nova realidade passou a exigir respostas da legislação” e que, a partir de 2011, quando ele, ainda advogado, buscou mostrar aos ministros que esse era um momento histórico. “(...) o embate entre o avanço civilizatório versus uma visão intolerante e antiga, que empurrava pessoas para a clandestinidade e incompletude. E enfatizei: o que vale a vida são os nossos afetos (...).
E revela quais foram as quinze decisões que considera “históricas do Supremo Tribunal Federal”:
“Proibição do nepotismo nos três Poderes; validação da lei que autorizou pesquisas com células-tronco embrionárias; abolição simbólica da censura, com a derrubada da Lei de Imprensa do regime militar; equiparação das uniões homoafetivas às uniões estáveis heteroafetivas; legitimidade das cotas raciais em favor de negros para ingresso em universidades públicas e em cargos públicos; julgamento da ação penal conhecida como ‘Mensalão’; inexigibilidade de prévia autorização para divulgação de biografias; proibição de financiamento eleitoral por empresas privadas; rito do procedimento de impeachment da presidente Dilma Rousseff; interrupção da gestação na hipótese de anencefalia ou durante o primeiro trimestre de gestação; limitação do foro privilegiado; Habeas Corpus coletivo em favor de mães, gestantes e lactantes; destinação de pelo menos 30% dos recursos dos fundos partidário e eleitoral para candidaturas de mulheres; criminalização da homofobia e proteção às comunidades indígenas contra a pandemia da covid-19″.
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