BRASÍLIA — Quatro dias depois de extremistas tentarem provocar uma intervenção militar no País, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva endureceu o discurso em relação às Forças Armadas e afirmou que elas “não são o poder moderador que pensam ser”. Num contexto de críticas e queixas sobre a atuação do Exército na invasão ao Palácio do Planalto por uma horda de bolsonaristas, Lula admitiu ao Estadão que “perdeu a confiança” em parcela dos militares da ativa.
A situação motivou uma mudança inédita na Presidência da República. Pela primeira vez, um presidente rejeitou ter militares fardados como ajudantes de ordens. A imagem de um “cordinha”, como são conhecidos, deixará de existir. Antes privativa de militares, a função era desempenhada por oficiais da ativa de carreira ascendente, que se tornavam muito próximos ao chefe do Executivo, por causa do acesso a informações pessoais sensíveis, como o telefone celular e a mala dos presidentes. Um ajudante de ordens permanece sempre ao lado do presidente, inclusive em reuniões reservadas e no carro presidencial.
“Eu perdi a confiança, simplesmente. Na hora que eu recuperar a confiança, eu volto à normalidade”, admitiu Lula à reportagem, quando questionado sobre se se sentia ameaçado. O presidente dissera, durante um café da manhã com jornalistas, que entregaria o cargo aos seguranças que já trabalham com ele desde 2010, entre eles militares aposentados, como o capitão Valmir Moraes. O presidente já havia substituído militares por policiais federais no círculo de guarda-costas.
Lula citou como razão ameaças de morte verbalizadas por militares a petistas. Segundo auxiliares, ele referia-se ao sargento da Marinha Ronaldo Travassos, antes lotado no Gabinete de Segurança Institucional (GSI), um frequentador do acampamento intervencionista no Quartel-General do Exército. O governo Lula foi informado que o praça havia sido motorista do ex-ministro do GSI Augusto Heleno, general da reserva, conselheiro de Jair Bolsonaro e opositor do petista.
“Eu pego no jornal um motorista do Heleno dizendo que vai me matar e que não vou subir a rampa. Outro tenente diz que vai me dar um tiro na cabeça, que não vou subir a rampa. Como vou ter uma pessoa na porta da minha sala que pode me dar um tiro?”, disse Lula.
As sucessivas decisões e declarações de Lula reforçaram a insatisfação e rejeição ao presidente nas cúpulas de Exército, Marinha e Aeronáutica. A interpretação em alas do meio militar é que Lula escalou a tensão. Parcela do generalato é simpática a Bolsonaro, que deu poder político e benefícios remuneratórios à caserna. Ao longo da campanha, Lula não conseguiu interlocução com os generais nem sequer montou um grupo temático na transição e teve de contornar uma saída antecipada dos antigos comandantes leais ao antecessor.
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Nos primeiros dia de governo, removeu militares de cargos de chefia no processo de “desbolsonarização” da Esplanada dos Ministérios e ordenou a desmontagem dos acampamentos de bolsonaristas nos quartéis. Um dia após a tentativa de golpe, cobrou dos comandantes em reunião fechada “onde estavam” os militares enquanto o Palácio era tomado e depredado.
Lula afirmou também que as Forças Armadas não são poder moderador. Aliados de Bolsonaro defendiam a tese, que não está prevista na Constituição, de que os militares poderiam intervir no governo, em interpretação do artigo 142. “As Forças Armadas não são poder moderador como pensam que são. As Forças Armadas têm um papel definido na Constituição que é a defesa do povo brasileiro e a defesa da nossa soberania contra conflitos externos. É isso que eu quero que eles façam bem feito”, disse Lula.
O presidente revelou nesta quinta-feira, 12, ter recebido a informação de que integrantes das caravanas bolsonaristas não poderiam desembarcar na área do QG do Exército, o que ocorreu. Reclamou também que havia entre os frequentadores “mulher e filha de general”, uma referência à família do general Eduardo Villas Bôas. Ex-comandante do Exército, ainda influente na caserna, ele foi autor de um tuíte que jogou pressão sobre à Suprema Corte às vésperas do julgamento de um recurso que poderia ter impedido a prisão de Lula em 2018.
Teve muita gente conivente, Eu estou convencido de que a porta do Palácio do Planalto foi aberta para essa gente entrar”
Luiz Inácio Lula da Silva, presidente
Lula expôs o Exército duas vezes. Primeiro contou que, na noite do domingo, recebeu um telefonema de um general que lhe pediu para recuar da estratégia de perseguir invasores que haviam destruído os palácios no acampamento na frente do QG. O argumento era que poderia haver uma tragédia. Dois blindados foram colocados na avenida que dá acesso ao setor militar. Eles impediram a entrada da PM. Na madrugada, extremistas se evadiram.
“Os tanques estavam protegendo o acampamento. O general me ligou dizendo para que não entrasse no acampamento de noite que era perigoso”, contou o presidente. Depois acusou militares do Batalhão de Guarda Presidencial de conivência com os invasores. O coronel comandante da unidade havia sido flagrado em vídeo tentando demover policiais de agir dentro do palácio e dizendo que os radicais deixariam o edifício.
“Quero ver todas as fitas gravadas. Teve muita gente da PM conivente, muita gente das Forças Armadas aqui dentro conivente. Eu estou convencido de que a porta do Palácio do Planalto foi aberta para essa gente entrar porque não tem porta quebrada. Ou seja, alguém facilitou a entrada deles aqui”, afirmou.
Lula revelou ter descartado decretar uma operação de Garantia de Lei e da Ordem (GLO), para qual militares estavam de prontidão, e que seria alternativa à intervenção federal na segurança do Distrito Federal. A proposta foi colocada na mesa do presidente pela Defesa e, segundo ele, recusada “na hora”.
“Se tivesse feito a GLO, eu teria assumido a responsabilidade de abandonar a minha responsabilidade. Aí, sim, estaria acontecendo o golpe que as pessoas queriam. O Lula deixa de ser governo para que algum general assuma o governo. Quem quiser assumir governo que dispute a eleição e ganhe.”
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