O maior desafio da política externa do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) será navegar em um mundo cada vez mais volátil, marcado por uma bipolaridade crescente entre Estados Unidos e China. A tarefa não será fácil para um país que vem se encolhendo no cenário internacional, sofre problemas de imagem e tem pouca tração econômica para alavancar seus interesses.
De acordo com Michael Schuman, autor de Superpower Interrupted: The Chinese History of the World (Superpotência Interrompida: a história chinesa do mundo), a guerra na Ucrânia e a pandemia aceleraram a rivalidade entre chineses e americanos. As sanções internacionais à Rússia fizeram Moscou se aproximar de Pequim, e a China reduziu sua dependência do Ocidente, aumentando a polarização.
Do outro lado do espelho, a imagem é invertida. A política de covid zero de Pequim, com base em lockdowns em massa, aumentou a pressão para que países ocidentais busquem fornecedores diferentes. “A guerra e a pandemia estão levando o mundo para uma direção perigosa, dividindo-o em duas esferas, uma centrada em Washington, a outra, em Pequim”, escreveu Schuman, na revista The Atlantic.
O novo governo brasileiro precisa aprender a conviver com essa rivalidade. A situação é parecida com a vivida por Getúlio Vargas, durante o Estado Novo, que formulou uma política externa pendular, entre os EUA e a Alemanha nazista, nos anos 30 e 40, extraindo de ambos os países concessões importantes.
“O Brasil não tem alternativa. Não podemos tomar partido neste mundo dividido”, disse ao Estadão Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e ex-embaixador do Brasil nos EUA. “Essa é a posição da Índia e da maioria dos países que não querem escolher um lado.”
Para o cientista político Guilherme Casarões, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), em São Paulo, um dos maiores desafios da nova política externa do Brasil, neste cenário de antagonismo entre Pequim e Washington, será como recuperar o protagonismo regional, após anos de marcha à ré da diplomacia brasileira na América do Sul.
“O Brasil perdeu o interesse pela América do Sul”, disse Casarões. “Isso vem desde o governo de Dilma Rousseff, bem antes de Jair Bolsonaro.” Com o vácuo deixado pelo Brasil, as relações comerciais, econômicas e tecnológicas mais importantes da região agora são com a China – embora culturalmente e politicamente a América do Sul ainda esteja mais alinhada com os EUA.
O Brasil perdeu o interesse pela América do Sul”
Guilherme Casarões, professor da FGV
De acordo com Casarões, Lula pode até tentar retomar o espaço perdido, mas precisa interpretar essa nova dinâmica internacional. “O mundo de hoje é bem mais complexo do que era 20 anos atrás”, afirmou. “Vivemos uma bipolaridade mais próxima dos tempos de Guerra Fria.”
Para complicar o caminho da retomada do protagonismo, o cerco às empreiteiras brasileiras na região – as consequências mais visíveis da Lava Jato na América Latina – imobilizará ferramenta importante de política externa: os investimentos. Hoje, com índices econômicos anêmicos, o Brasil perdeu seu poder de atração.
Cenário
A complexidade do cenário externo é outra questão que não deixa muita margem de erro. Apesar de ser dominado pela rivalidade crescente entre EUA e China, as relações internacionais são mais complexas do que durante o último período bipolar, entre soviéticos e americanos.
Segundo Schuman, diferentemente da Guerra Fria, quando europeus e americanos tinham uma interação apenas marginal com a União Soviética, hoje os dois polos, China e EUA, estão muito mais integrados e são economicamente interdependentes. “Além disso, há uma troca cultural maior, a tecnologia é diferente e as pessoas estão mais conectadas”, disse.
Diplomacia
É por isso que preocupa o afastamento recente e mais profundo entre chineses e americanos. Esses detalhes tornaram o cenário internacional mais confuso e órfão de análises multifacetadas. “Assim, o trabalho mais importante de um formulador de política externa é saber ler o mundo. E há várias interpretações diferentes”, disse Feliciano de Sá Guimarães, diretor acadêmico do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).
Segundo ele, além da bipolaridade evidente entre EUA e China, o sistema internacional pode estar caminhando para uma disputa entre modelos políticos: de um lado as democracias capitalistas; de outro, modelos capitalistas autoritários.
As duas bipolaridades não são excludentes e, muitas vezes, pode haver uma sobreposição de interesses, o que torna inútil análises rasteiras do cenário internacional. “Essa disputa pode durar décadas. Se isso ocorrer, será muito difícil que não tenhamos no futuro um grande partido autoritário de direita no Brasil”, disse. “Um sistema internacional moldado nesses termos teria espaço para o bolsonarismo, mesmo derrotado na eleição.”
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