O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) diz que o pai sofre perseguição política. A Polícia Federal e Alexandre de Moraes escolheram a dedo a ordem dos indiciamentos do Jair Bolsonaro de olho no principal argumento da defesa do ex-presidente. Era preciso acusá-lo de se apropriar de joias e de falsificar cadernetas de vacinação antes de responsabilizá-lo pela tentativa de golpe em razão do 8 de Janeiro.
Esvaziava-se assim a tese da perseguição política antes de a Corte retomar em agosto o julgamento que revê o foro privilegiado, o que deve colocar o pai do senador no colo dos ministros. Eis uma cronologia que não parece acidental. Mas não só. No auge dos problemas judiciais que enfrentava, o ex-prefeito Paulo Maluf dizia temer mais as investigações do frangogate do que dos escândalos dos precatórios e explicava: “Frango todo mundo sabe o que é. Precatório ninguém sabe”. Qualquer um sabe o que é uma joia, enquanto atentar contra o Estado Democrático de Direito parece uma abstração incompreensível sem tanques nas ruas.
As cenas da apreensão das joias que chegaram escondidas na mala de um militar em Cumbica e da tentativa de reaver as pedras preciosas a poucos dias do término do governo não deixam dúvidas para quem as vê. Nem para os procuradores da República: ou os itens eram presentes personalíssimos das Arábias e quem tentou entrar no País com eles escondidos como muamba cometeu crime de descaminho ao não declará-los à Receita ou eles eram bens da União e o delito cometido foi o peculato.
É preciso lembrar? Quem foi flagrado nas imagens não eram pessoas distantes do presidente. Eram da comitiva que o representou na Arábia Saudita. Ali estavam militares, como o almirante Bento Albuquerque, e seu ajudante de ordens Marcos André dos Santos Soeiro. Foi com este que o colar milionário para a primeira-dama foi apreendido. Albuquerque passou pela Receita também carregando joias, sem declará-las.
Mais tarde, o faz-tudo de Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, enviou a Guarulhos o sargento Jairo Moreira da Silva para tentar reaver as joias apreendidas pela Receita. Era dezembro de 2022. A missão era não deixar nada para o próximo governo. Queriam fazer tudo sem registro e apagar os rastros. Para vender o pequeno tesourou nos EUA e encher o bolso de dólares? Flagrados, Cid delatou o esquema. E os federais encontraram milhares de e-mails e mensagens que desvendaram a trama.
Flávio parece confundir a persecução penal com perseguição penal. Não é o único. O agora senador Sérgio Moro foi ao X dizer que “há uma notável diferença de tratamento entre situações similares”. O ex-procurador e ex-deputado Deltan Dallagnol fez o mesmo. Eles comparam o caso de Bolsonaro com dos presentes de Lula, que Moro, como magistrado, mandou arquivar.
A questão é que Lula ou seus emissários, apesar de toda a corrupção na Petrobras, nunca foram flagrados escondendo bens da alfândega. E tudo filmado. Moro e Dallagnol podiam ter ficado quietos. Em vez disso, entregaram uma nova pérola ao petismo, que sempre viu o senador como um magistrado de dois pesos e duas medidas.
O foro privilegiado
O que há de similar entre Lula e Bolsonaro é que ambos foram chefes de Estado acusados e apresentados à população como políticos desonestos. As diferenças ficam por conta do Supremo, dos defensores dos dois e de como a história irá tratá-los. É aqui que surge o desafio para o STF, o mesmo diante do qual concluiu que Moro falhou: Bolsonaro, assim como Lula, precisa ter um julgamento justo. As provas da acusação devem ser submetidas ao contraditório e, ainda que as filmagens da Receita sejam contundentes, é preciso que as condutas de cada réu na trama sejam individualizadas não apenas por meio da delação.
Em abril, a Corte formou maioria no habeas corpus 232.627 (DF) para mudar seu entendimento de 2018 que limitava o foro privilegiado aos políticos no exercício do mandato. Seis ministros já votaram para voltar a centralizar no STF todos os casos de crimes cometidos por políticos, mesmo dos que não foram reeleitos, ou renunciaram ou foram cassados. O HC teve o pedido de vista do ministro André Mendonça, cujo prazo de 90 dias para liberar o caso acabará no dia 11 de julho. Ou seja, na próxima quinta-feira. A data cai no meio do recesso da Corte, o que deve empurrar a retomada do julgamento para depois do dia 1º de agosto.
A decisão final, portanto, pode ocorrer antes do julgamento da denúncia que a Procuradoria da República deve apresentar contra Bolsonaro. Essa mudança pode impedir que o caso das joias seja remetido à primeira instância, diminuindo consideravelmente as chances para a defesa do ex-presidente colher nulidades que permitam rasgar uma eventual condenação.
O ex-presidente, por uma dessas ironias na política, terá de seguir o mesmo caminho da defesa do presidente Lula? O petista questionou desde o começo a competência da 13.ª Vara Criminal de Curitiba para julgá-lo. Ganhou no STF. Bolsonaro terá de questionar a competência do STF para julgá-lo, apesar do habeas corpus 232.627 (DF). E, depois, contar com o tempo. O ex-presidente está a nove meses de completar 70 anos, quando os prazos para o reconhecimento da prescrição de crimes de um acusado caem pela metade.
A conta dos militares
Por fim, o caso das joias começa a fechar a conta do governo Bolsonaro com os militares. Só nele três oficiais generais foram indiciados pela PF: os almirantes Bento Albuquerque e José Roberto Bueno Júnior e o general Mauro Cesar Lourena Cid, o pai do ajudante de ordens do ex-presidente. Com a conclusão do inquérito sobre o 8 de Janeiro, outros oficiais generais devem aparecer entre os indiciados. Walter Braga Netto é um deles. O outro é Almir Garnier, ex-comandante da Marinha.
Com isso estará fechado o capítulo das apurações. Muitos generais acreditam que não houve tentativa de golpe no dia 8 de janeiro. Primeiro, porque não apoiaram a aventura e, depois, porque não haveria golpe sem carro de combate nas ruas. Há aí um erro. Golpe com carro de combate normalmente é vitorioso e ganha até outro nome: revolução. Sem os tanques, ele vira golpe tentado ou intentona. Ainda que a tentativa do dia 8 fosse, retrospectivamente, uma insanidade, ela se baseava no exemplo do que ocorrera em Sri Lanka, contra o presidente Gotabaya Rajapaksa, em 2022.
Havia, portanto, o dolo e uma estratégia que, no Brasil, fracassou. Mesmo assim, é preciso que as sentenças sejam equilibradas para que as penas não façam vomitar os justos, nem a anistia seja vista como remédio melhor do que a prisão. É necessário lembrar aos que dizem defender a democracia o aforisma de Cesare Beccaria: o que inibe o crime não é o tamanho da pena, mas a certeza da punição. Só a certeza da punição de quem agiu contra a democracia dará segurança às instituições.
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