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As relações entre o Poder Civil e o poder Militar

Análise | A história do homem que liga o sumiço de testes da covid-19 ao tráfico de metanfetamina em SP

Detido na Operação Heisenberg, Marcos Zheng dizia ter intermediado o contato entre o governo Doria e a cidade de Wuhan, epicentro da epidemia de coronavírus, e circulava pelo Palácio dos Bandeirantes com autoridades chinesas, agora é acusado de traficar com mexicanos a droga da série ‘Breaking Bad‘ no Estado; defesa não se manifestou

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Foto do author Marcelo Godoy
Atualização:

O empresário Zheng Xiao Yun era um cidadão de bem. Assim atestava a Associação Chinesa do Brasil sobre o homem, então seu vice-presidente, preso, em 2020, sob a suspeita de liderar uma quadrilha flagrada com 15 mil testes de coronavírus e dois milhões de equipamentos de proteção contra a doença importados da China e furtados no aeroporto de Guarulhos. Agora, o homem mais conhecido como Marcos Zheng é apontado como um dos líderes da máfia chinesa responsável por inundar São Paulo com metanfetamina, em parceria com narcotraficantes mexicanos e nigerianos.

Marcos Zheng agora é acusado de ser um dos líderes da máfia chinesa da metanfetamina Foto: Palácio dos Bandeirantes

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Em cinco anos, o homem que frequentava o Palácio dos Bandeirantes, acompanhando autoridades e banqueiros chineses em encontros com os então governadores Geraldo Alckmin e João Doria, tornou-se o centro de dois rumorosos inquéritos policiais. Desta vez, ele está entre os 22 presos da Operação Heisenberg, desencadeada pelo Departamento Estadual de Narcóticos (Denarc), no último dia 17, após seis meses de investigações para desarticular a rede que controla a produção e venda do cristal, a droga popularizada pela série Breaking Bad.

É daí que vem o nome da operação: Heisenberg era o codinome usado pelo personagem Walter White, o professor de química que começa a produzir a droga no Novo México. A coluna não conseguiu contato com a atual defesa de Zheng, bem como dos demais acusados investigados pelo Denarc. Dois deles são mexicanos nascidos em Jalisco, Estado onde o Cartel Jalisco Nueva Generación (CJNG) começou a produzir a droga na primeira década deste século.

Era justamente dali que vinha a droga consumida no Brasil e vendida por cerca de R$ 500 o grama até que o engenheiro químico mexicano Guillermo Fabian Martinez Ortiz, o Fantasma, estabeleceu-se em São Paulo e passou a “cozinhar” a metanfetamina em apartamentos da capital. Nascido em Veracruz, outra área dominada pelo CJNG, Ortiz era ajudado pelo compatriota David Hazael Cruz Avila para produzir e vender a kriko – como eles chamam a metanfetamina – no Brasil.

O engenheiro químico mexicano Guillermo Ortiz, o Fantasma, que teve a prisão decretada na Operação Heisenberg, sob a acusação de 'cozinhar' metanfetamina em São Paulo Foto: Reprodução / Estadão

De imediato, segundo a investigação do Denarc, os mexicanos assumiram o monopólio da produção da droga, enquanto chineses e nigerianos passaram a distribuí-la para festas e em baladas, criando um novo mercado para o uso da metanfetamina, o chemsex ou chemical sex, o sexo químico. Para tanto, se valiam de uma rede de garotas de programa que entregavam a droga aos clientes ao mesmo tempo em que os atendiam em hotéis e motéis da cidade em sessões que podiam durar um dia inteiro.

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Com o tempo, nigerianos liderados por Francis Philip e, depois, os chineses aprenderam a produzir a droga e começaram a cozinhá-la em imóveis espalhados pela cidade. Foi aí que entrou a figura de Zheng. De acordo com relatório do delegado Fernando José Santiago, do Denarc, um desses endereços era um apartamento de um condomínio na Rua Almeida Torres, na Aclimação, bairro de classe média no centro da cidade. Durante 90 dias em que esteve sob vigilância, o apartamento recebeu 2.117 visitas de envolvidos no esquema.

Ali os policiais encontraram dois quilos da droga e prenderam em 2 de junho os chineses Lin Xiaozhe, o Bruce Lee, apontado como dono do imóvel; Wu Changhui, o Lucas; Zhi Li, o Atum, e o homem apontado então como o chefe dessa célula: Pikang Dong, o Rodízio. Meio quilo da droga estava com Rodízio, que usara um Mercedes-Benz GLK-300 para transportá-la, conforme resíduos de metanfetamina encontrados pela perícia no veículo.

O narcotraficante Pikang Dong, surpreendido com 2 quilos de metanfetamina na Operação Heisenberg: ligação com Marcos Zheng Foto: Reprodução / Estadão

No celular de Rodízio a perícia achou até uma receita sobre como se produz a metanfetamina, com gráficos, desenhos e instruções detalhadas. Diz a polícia: “No aparelho celular de Pikang Dong foram encontradas inúmeras conversas relacionadas à comercialização de metanfetamina, bem como diversos comprovantes de transações bancárias relacionadas a este mesmo fato, e ainda incontáveis imagens de drogas e armas”.

Ao cruzar os nomes dos contatos com os documentos do carro, os investigadores descobriram que Rodízio mantinha contatos com Marcos Zheng, a quem tratava como “presidente” e com quem demonstrava, segundo a polícia ter “um estreito relacionamento, além de aparente subordinação”.

Os laços entre os donos não se limitavam a mensagens. Zheng foi flagrado pelos policiais no dia 16 de junho visitando o apartamento onde Rodízio foi preso 15 dias depois. Além disso, o Mercedes-Benz apreendido pelos policiais com Rodízio era do empresário, bem como era dele outro endereço usado como ponto de encontro e citado em conversas da máfia da metanfetamina na cidade: um sobrado da Rua Cipriano Barata, no Ipiranga, na zona sul.

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Marcos Zheng deixa o imóvel na Rua Cipriano Barata, no Ipiranga sob vigilância da polícia: mensagens e encontros com narcotraficantes de metanfetamina Foto: Reprodução / Estadão

Foi ali que os policiais civis o prenderam pela primeira vez, em 2020, quando recuperaram os testes de covid-19 desviados do setor de cargas internacionais do aeroporto. Um outro chines, Fu Zhihong, teria pedido R$ 4 milhões para devolver a mercadoria à empresa que a importara da China.

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Na época em que era conhecido como um cidadão de bem, Zheng já havia sido vítima de sequestro e visto uma secretária ser morta a tiros – o pistoleiro a confundiu com sua mulher. Ele se livrou de uma condenação por supostamente trazer relógios falsificados para o Brasil enquanto intermediava encontros de banqueiros e empresários chineses com políticos brasileiros. E dizia ter feito a ligação entre a Secretária de Saúde do governo Doria com hospitais e médicos de Wuhan, a cidade chinesa onde a pandemia de covid-19 se originou, para a troca de informações sobre a doença.

Na época, a defesa de Zheng apresentou a versão de que seu compatriota Zhihong apenas alugara a casa do empresário. Zheng pensaria que tudo ali era negociado com nota fiscal. Portanto, desconheceria as atividades ilícitas do compatriota, conforme a argumentação apresentada pelo seu então advogado, Daniel Bialski, que pouco tempo depois deixou o caso. A reportagem não conseguiu localizar o novo advogado de Zheng, mas a Justiça, que inicialmente lhe negou habeas corpus, decidiu colocá-lo em liberdade. No dia 9 de outubro deste ano, a juíza Erika Fernandes, da 13.ª Vara Criminal, condenou Cheng e Zhilong a 9 anos anos de prisão. Eles apelaram da sentença em liberdade.

Marcos Zheng (primeiro á esquerda) em uma das reuniões em que compareceu com empresários chineses no Palácio dos Bandeirantes; aqui com o então governador Geraldo Alckmin Foto: Assessoria de Imprensa do Palácio dos Bandeirantes

Quatro anos depois, a polícia agora registrou que Zheng “mantém diversos diálogos com Rodízio, além de aparecer em vários outros diálogos com traficantes de metanfetamina, bem como seu endereço, Rua Cipriano Barata, que apenas no aplicativo WeChat é mencionado 22 vezes por 11 interlocutores diferentes. Ademais, em grande parte das vezes em que o endereço é mencionado, há um nítido contexto relacionado a entrega ou envio de drogas.”

No dia 11 de julho, ele foi fotografado pelo Denarc deixando o endereço em companhia de uma mulher. Entre as mensagens de Rodízio para Zheng encontradas pelos policiais estava uma de fevereiro de 2024, na qual o narcotraficante chinês se queixa de um brasileiro que distribuía a droga para o grupo. Tudo por causa de uma fotografia que o brasileiro fez na casa da Rua Cipriano Barata, rompendo uma regra de segurança do grupo.

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Rodízio – Presidente, esse brasileiro (Thiago Almeida Nascimento) de ontem é um lixo. Da próxima vez que você o ver, traga alguma coisa para ele e foda-se. Essa pessoa merece morrer, foda-se ele. Está causando muito barulho (confusão). Ele não é gente. Ontem, estávamos sentados lá (Rua Cipriano Barata, endereço de uma PJ de Zheng) e ele tirou uma foto minha. Ele até disse no carro dele. Foto tirada por ele. Ele é realmente uma besta. Muitos querem matá-lo de porrada.

Zheng – Sério? Para quem ele enviou a foto?

A fotografia que causou a revolta de Pikang Dong contra brasileiro e o diálogo entre ele e Marcos Zheng encontrado pela polícia Foto: Reprodução / Estadão

Rodízio – Você viu o que ele enviou para aquele cara? O que Thiago me enviou foi porque ele me mostrou essa foto ontem e eu olhei para ele e senti que algo estava errado. Eu disse, sr. Zhang, e ele me perguntou se eu o conhecia. Eu disse não, claro que não era apropriado. A foto que Gu me enviou para ele mostrava realmente não mostrava a mesa e a garrafa em sua casa.

Zheng – Você quer que eu ligue para ele esta tarde para consertá-lo?

Rodízio – Postar essa foto para desabafar não é uma coisa boa.

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Os policiais encontraram ainda transferências de dinheiro do traficante Wenli Zhen e um vídeo do mexicano Guillermo Ortiz em seu imóvel no Ipiranga. O filme estava no celular de Rodízio, que o mandou com a seguinte mensagem: “Ele (Guillermo) diz que essa transferência agora não pode ser feita. Ele pode transferir de outra conta e estarei com ele novamente. Espere um momento e o cozinheiro e o decorador já estão em sua casa”.

Era Rodízio quem mantinha contato com os nigerianos liderados por Philip. O nigeriano mantinha contato com traficantes brasileiro de outras substâncias, como o GHB, a chamada droga do estupro. A polícia achou mensagens dele para o engenheiro civil Natan Wander Brandão, preso em uma operação da polícia carioca que desbaratou em 2023 um grupo liderado por um biomédico que vendia a droga no Rio. Depois, foi posto em liberdade.

O engenheiro químico mexicano Guillermo Ortiz trabalhando no imóvel de Marcos Zheg, segundo o que escreveu Pikang Dong, o Rodízio Foto: Reprodução / Estadão

Durante a Operação Heisenberg, os policias cumpriram 101 mandados de busca e apreensão e 60 de prisão temporária – 32 chineses, 4 nigerianos, 4 mexicanos, 2 portugueses e um colombiano, além de 17 brasileiros. Todos eles foram expedidos pelo juiz Guilherme Eduardo Martins Kellner, da 2.ª Vara de Crimes Tributários, Organização Criminosa e Lavagem de bens e Valores da Capital, em uma decisão de dez páginas.

“A medida se mostra imprescindível para sucesso da investigações, pois se trata de suposta organização criminosa direcionada ao tráfico de drogas, ofendendo a paz e a saúde públicas, de forma que possivelmente continuará em atividade enquanto perdurar a liberdade de seus membros”, escreveu o magistrado.

No cumprimento dos mandados, os policias encontraram em uma casa do empresário uma espécie de boate vazia. Em outro imóvel havia 7 mulheres chinesas. A casa tinha estrutura de boate, com quartos para as chinesas, que seriam vítimas de exploração sexual. Ao todo, 22 dos acusados foram detidos no dia 17 de dezembro. Entre eles estava Zheng, o cidadão de bem que, segundo a Associação Chinesa, “contribuiu de forma significativa para estabelecer o laço de amizade entre Brasil e China”. Acabou preso em um motel.

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Dinheiro e drogas apreendidos pela Polícia Civil durante a Operação Heisenberg Foto: Divulgação/Polícia Civil
Análise por Marcelo Godoy

Repórter especial do Estadão e escritor. É autor do livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015). É jornalista formado pela Casper Líbero.

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