A crise entre o governos do presidente Luiz Inácio Lula Silva e do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu em torno das ações de Israel em Gaza e das declarações do brasileiro sobre o Holocausto deve ter um novo capítulo envolvendo o Exército brasileiro. É que entre os principais concorrentes da licitação internacional da Força Terrestre para adquirir 36 viaturas blindadas de combate obuseiros de calibre 155 mm autopropulsados sobre rodas (VBCOAP-SR) está a empresa Elbit Systems, de Israel, e suas subsidiárias brasileiras, a Ares Aeroespacial e Defesa e AEL Sistemas.
Trata-se de um negócio estimado em R$ 1 bilhão, para equipar as unidades de artilharia divisionária cujo resultado deve ser anunciado em 2 de abril. A empresa israelense se habilitou no Comando Logístico do Exército/Diretoria de Materiais (Colog/DMAT) ao lado de outras 18 de países como China, França, Eslováquia e Sérvia. Seu produto, o Atmos 2000 é um dos mais fortes concorrentes em razão dos requisitos operacionais absolutos (ROA) e desejáveis (ROD) publicados no Boletim do Exército de 28 de julho de 2023 – o anexo 3 do edital feito pelo Colog traz 40 ROAs e 23 RODs.
Além do Atmos 200, o francês KNDS Caesar também está no páreo. Trata-se de dois armamentos presentes no teatro de operações europeu e fabricados por aliados tradicionais. Em 2023, a Dinamarca enviou, por exemplo, 19 Caesars de 155 mm à Ucrânia e comprou 19 Atmos de igual calibre por US$ 117 milhões (cerca de R$ 570 milhões) a fim de repor o equipamento em seu Exército.
O Estado-Maior do Exército pretendeu desde o início que os fatores geopolíticos ficassem de fora do processo de decisão. Ou seja, o concorrente que apresentasse a melhor proposta, levaria o contrato, não importando se fosse chinês, israelense ou francês. Isso porque, já no ano passado a compra dos obuseiros autopropulsados havia se transformado em um terreno de disputa entre a Norinco chinesa e fornecedores ocidentais, com a esquerda do PT defendendo o fim da “dependência americana” na área da Defesa.
Agora, a esquerda petista, que está em pé de guerra com o governo Netanyahu desde o começo da invasão de Gaza, começa a se articular para pressionar o governo Lula contra a possibilidade de a Força Terrestre comprar o equipamento israelense. Petistas históricos, como José Genoino, por exemplo, consideram que adquirir, neste momento, o produto da Elbit System seria financiar indiretamente o esforço de guerra de Israel. Ele alerta que isso traria um enorme desconforto, uma saia justa, para a base social do governo, que não entenderia a medida ainda mais diante do atual nível de confrontação com a administração Netanyahu.
Mais que isso, a esquerda do PT espera que o governo reexamine os acordos firmados na área militar e de segurança com Israel, inclusive as compras de armas leves para as polícias estaduais, em detrimento de fabricantes nacionais. “Ainda não chegamos nesse ponto. Mas é evidente que, se a crise continuar a escalar, ela pode levar à desclassificação da empresa israelense. Israel tem a perder. Não é bom para Israel continuar nisso. Se continuar o bate-boca, ficará difícil fazer a compra”, afirmou o deputado Carlos Zarattini (PT-SP), que integra a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados.
A coluna apurou no comando do Exército que o resultado da licitação ainda está em aberto. Se a empresa israelense sair vencedora, não se sabe o que pode acontecer, se haverá ou não algum tipo de restrição. Não apenas do governo brasileiro, mas também do israelense. Em outubro de 2023, após o presidente colombiano Gustavo Petro fazer uma declaração parecida com a de Lula, Israel suspendeu a cooperação militar com o país sul-americano. Ou seja: a licitação do Exército pode se transformar em uma forma de se verificar até que ponto a revolta do gabinete Netanyahu vai além da lacração das redes sociais.
Para o Exército, o melhor seria que até abril esse episódio esteja superado. Além da compra dos 36 VBCOAP-SR, militares brasileiros alertam que há diversos equipamentos e sistemas de armas das Forças Armadas que, ou são israelenses, ou têm partes e conjuntos daquele país. Eles citam como exemplo as aeronaves Gripen e KC 390, da FAB, e os helicópteros Fennec, usados pelo Exército. Estes são franceses, mas também contam com equipamentos israelenses. Há ainda outros sistemas de guerra eletrônica e de comando e controle com a mesma origem: exemplo disso são os mísseis Spyke, que o Exército adquiriu da israelense Rafael.
Assim, caso Israel retaliasse o Brasil e decidisse interromper o fornecimento de armas, peças e componentes às empresas brasileiras, isso traria sérios problemas para a nossa Base Industrial de Defesa. Ou seja, segundo os militares, defender o boicote aos produtos de Israel seria um tiro no pé de nossa própria indústria. Após a comparação de Lula da ação de Israel em Gaza com o Holocausto, Netanyahu declarou que o brasileiro ultrapassou a linha vermelha; seu governo o declarou persona non grata. O episódio fez a oposição no Brasil reunir 139 assinaturas de parlamentares em um requerimento de impeachment do petista.
Na sexta-feira, Lula voltou ao tema e qualificou a ação israelense em Gaza como genocídio. “Se não é genocídio, não sei o que é.” Ao mesmo tempo, os petistas lembram o episódio da compra dos caças da FAB, quando a presidente Dilma Rousseff (PT) cancelou uma visita aos EUA, após a descoberta de que havia sido espionada pela Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês), dos Estados Unidos. Na época, o caça F-18 Hornet era um dos concorrentes na licitação da FAB, mas acabou preterido pelo sueco Gripen.
Por enquanto, o único resultado prático da crise aberta pela estapafúrdia declaração de Lula em Adis Abeba e aprofundada pelo comportamento impróprio do chanceler Israel Katz, com sua diplomacia da lacração, foi encobrir o drama dos reféns mantidos pelos Hamas e dos mais um milhão de civis palestinos submetidos às bombas da reação israelense. À direita e à esquerda explora-se politicamente o bate-boca, enquanto gente morre todos os dias em Gaza, diante da indiferença internacional.
Para Hannah Arendt (Responsabilidade e Julgamento), nossas decisões sobre o certo e o errado dependem da escolha das companhias com quem pretendemos passar a vida e de seus exemplos. Ela receava que fosse provável que a maioria não se importasse com essa questão. “Em termos morais e até políticos, essa indiferença, embora bastante comum, é o maior perigo.” Um perigo que se alia a outra tendência moderna: a recusa em julgar. Sem exemplos e julgamentos ao se estabelecer relações e ao buscar companhias formam-se obstáculos aos poderes humanos para agir. “Nisso reside o horror e, ao mesmo tempo, a banalidade do mal.”
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