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As relações entre o Poder Civil e o poder Militar

Análise|A morte secreta do maior espião da história dos serviços militares do Brasil e a Abin de Bolsonaro

O desaparecimento de Severino Theodoro de Mello e as investigações da PF sobre a Abin Paralela levantam novas questões sobre os controles e os limites dos serviços secretos em uma democracia

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Foto do author Marcelo Godoy
Atualização:

Severino Theodoro de Mello passou os últimos anos em seu apartamento em Copacabana. As visitas que recebia eram cada vez mais raras. De tempos em tempos, algum velho camarada questionava se ele ainda estava vivo. Os contatos com os companheiros e os pedidos de entrevista minguaram desde que tudo a seu respeito ficou claro. Nascido em 1917, ano da Revolução Russa, ele era o último sobrevivente do levante militar de 1935.

Documento sigiloso feito com base em informações de Severino Theodoro de Mello e produzido após a redemocratização; sua difusão foi proibida até para outros órgãos da comunidade de informações a fim de proteger a identidade do informante Foto: Reprodução / Marcelo Godoy

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Chamada de intentona comunista, a rebelião explodiu em Natal (RN) e se espalhou por unidades do Exército do Recife e do Rio. O cabo Mello uniu-se aos revoltosos do 29.º Batalhão de Caçadores, no bairro do Socorro, em Jaboatão dos Guararapes (PE), e marchou em direção ao Recife. Começa ali o caminho que ligou sua vida à do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Em 1938, entrou para a legenda. Estava preso. Posto em liberdade em 1942, foi para o Rio de Janeiro. Mello cuidou do imóvel onde se escondia o líder comunista Luiz Carlos Prestes, após a decretação da ilegalidade da sigla, em 1947. Nas décadas seguintes, manteria relações com o serviço secreto soviético, a KGB, e ocuparia cargos no Comitê Central, na Executiva e no Secretariado do partido durante a clandestinidade no Brasil, o exílio em Moscou e a volta ao País, após a anistia de 1979. Era conhecido como Pacato.

Em 1992, acompanhou a maioria dos colegas, quando Roberto Freire decidiu abandonar símbolos, nome e ideologia, transformando o PCB em PPS. Pacato era objeto de homenagens dos antigos colegas até o aparecimento do sargento Marival Chaves, ex-integrante do Centro de Informações do Exército (CIE), que revelou a identidade de Mello como o agente Vinícius, um espião cooptado em 1974 pelo capitão Ênio Pimentel da Silveira, o Doutor Ney, do Destacamento de Operações de Informações (DOI) do 2.º Exército. Quase ninguém na legenda acreditou na acusação. Era a palavra de um homem da ditadura contra a de um velho comunista.

Da esq. para dir, o major Dalmo Cyrillo, subcomandante do DOI/II Exército, o capitão Ênio Pimentel da Silveira, o Doutor Ney, chefe da Seção de Investigação do DOI, e o delegado Sérgio Paranhos Fleury (DOPS-SP) Foto: ARQUIVO PESSOAL / MARCELO GODOY

Começava ali um processo de duas décadas de investigações jornalísticas para desnudar o papel de Mello em dezenas de sequestros, mortes, prisões e desaparecimentos que ajudaram a neutralizar o PCB nos anos 1970 e garantir aos militares que a abertura política seria feita sem que a sombra de um partido comunista organizado voltasse a ameaçar a democracia sonhada pelos generais. Com o tempo, surgiram outros depoimentos, todos confirmando o relato de Marival, bem como novas peças no caso.

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Mas foi somente em 2015 que foi possível ter ideia de todos os fatos que faziam de Mello, de acordo com seus antigos camaradas, o maior traidor da história do PCB e, certamente, o mais importante espião cooptado pela inteligência militar em toda a sua história. Conhecer essa dimensão só foi possível em razão dos relatos ainda sigilosos de oficiais que participaram da ação com Mello, como o capitão Antonio Pinto, o Doutor Pirilo, e de conversas mantidas pelo próprio ex-dirigente comunista.

Pirilo era um oficial do Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa). Ele e Mello estiveram no núcleo central da mais duradoura operação de espionagem política da República, que sobreviveu ao fim do regime militar e se estendeu pelos mandatos de quatro civis que ocuparam a Presidência a partir de 1985, sem que estes tivessem conhecimento ou a tivessem autorizado. Mello já estava afastado da direção do PPS quando a legenda, diante das novas provas, resolveu desligá-lo de seus quadros em 2016.

O ex-dirigente comunista Severino Theodoro de Mello em seu apartamento em Copacabana, no Rio, em 2018 Foto: Marcelo Godoy

O homem pacato teve a vida alcançada e revirada pelos acontecimentos de seu tempo. Mas ninguém percebeu quando, em junho de 2023, o Exército deixou de lhe pagar os proventos de capitão reformado. Os velhos companheiros não souberam o que se passou. Ninguém compareceu ao velório – se houve – ou ao enterro. Mello viveu clandestino a maior parte da vida e assim também se foi. Tinha 105 anos. Sua morte permaneceu em sigilo até agora. Ela encerrou um dos mais sombrios capítulos da vida da República.

A história de Mello é a do veneno da desconfiança que molda a esfera pública, quando se busca obter pela força aquilo que se pensa impossível por meio da negociação e do convencimento. Por meio dele, pretende-se transformar a política na continuação da guerra por outros meios. As instituições da República deveriam olhar para esse passado de golpes e proscrições, não para reavivar polarizações e atingir no presente quem não era vivo em 1964, mas para desentocar o que dele permanece em nossos dias e nos ameaça.

É que a inteligência do Estado não pode servir aos interesses do partido político que ocupa o poder. Seu trabalho não pode ser sequestrado pelos objetivos da direita ou da esquerda. Usar o serviço secreto militar para fins de uma legenda ou de uma corporação é o que Nicolás Maduro faz na Venezuela. Utilizar o sistema de inteligência contra opositores é o que a PF acusa o general Augusto Heleno e o ex-presidente Jair Bolsonaro de fazer, com base nas imagens da reunião de 5 de julho de 2022, no Palácio do Planalto.

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Eis um passado que não passou? A morte de Mello e os eventos do presente mostram a necessidade de se definir a função e os limites de cada órgão de informação na República. Richard Nixon teve de renunciar por causa de Watergate, quando decidiu espionar os rivais democratas. Usar a inteligência civil ou a militar sem que seus agentes prestem contas às autoridades civis ou desvirtuá-las, como no universo paralelo da Abin de Bolsonaro, é uma velha tentação política. O socialista Felipe González teria cedido a ela na Espanha.

Por trás desse pecado, está sempre a ideia de que um fim louvável justifica o mal que se faz para atingi-lo. Esse passo – fácil de se empreender – é uma das maiores traições que se pode cometer em uma República. Mello foi apenas um instrumento de quem subverteu a dignidade, a autoridade e a civilidade. Via-se virtude em esmagar as liberdades. Fazia-se da democracia algo vulgar, palavra vazia na boca de quem não reconhece o seu valor universal. Toda Abin paralela sonha com um agente Vinícius. A morte ou a punição não acabam com essa tentação. Nem a vida pública se regenera com impunidade, livramentos ou metanoias.

Análise por Marcelo Godoy

Repórter especial do Estadão e escritor. É autor do livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015). É jornalista formado pela Casper Líbero.

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