Desde que assumiu o comando do Exército em 21 de janeiro de 2023, após o ataque às sede dos Três Poderes, em Brasília, o general Tomás Miguel Ribeiro de Paiva e muitos inegrantes do Alto-Comando ouviam de seus colegas recriminações sobre a existência de um “certo exagero” nas prisões e condenações dos que foram apanhados em Brasília, nas horas que se seguiram à intentona bolsonarista. Esse estado de espírito mudou.
Não em relação aos civis submetidos a penas de 14 a 17 anos de prisão, após terem sido abandonados pelos que os insuflaram e conspiraram contra seus comandantes, tornando letra morta a lealdade, a disciplina e a honra vividas dentro da hierarquia da instituição militar. Estes – os civis processados – ainda despertam um sentimento de comiseração entre os generais. Exatamente o contrário do que expressam, agora, em relação aos antigos colegas flagrados pela Polícia Federal, cujas condutas foram descritas no relatório do inquérito sobre o golpe, que acusou Jair Bolsonaro.
São 24 os militares entre os 37 indiciados pela PF – 16 deles eram da ativa, na época dos fatos –, entre os quais seis oficiais generais, cinco do Exército e um da Marinha. Há ainda um ex-oficial – Airton Barros. Ao todo, 62 militares da ativa e da reserva são enumerados no relatório final. Ou seja, a maioria não foi alvo de indiciamento, pois não teria praticado crime, apenas externado sua opinião – ainda que de forma imprópria – aos colegas em mensagens e documentos. Entre estes, estão os 18 signatários da Carta ao Comandante do Exército de Oficiais Superiores da Ativa do Exército Brasileiro.
O inquérito do Golpe e a Operação Contragolpe demonstraram que a PF se debruçou sobre a conduta de 78 oficiais, 16 dos quais listados exclusivamente na medida cautelar da operação, que mandou para a cadeia quatro militares e um policial federal. Os federais, no entanto, deixaram de capturar alguns fatos, cujos significados não passaram despercebidos pelos chefes da Força Terrestre. Muitos generais se debruçaram sobre as 884 páginas do relatório do inquérito do golpe, uma leitura incômoda e desagradável, mas necessária – a coluna ouviu cinco deles, três de Exército e dois de divisão. Todos testemunharam de perto os eventos de 2022.
E tiraram algumas conclusões da leitura dos autos: independentemente do que for decidido pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, ou do que decidir o Supremo Tribunal Federal, a Força Terrestre, no que diz respeito à honra, deve punir todos os envolvidos. Os Conselhos de Justificação devem atingir oficiais como Walter Braga Netto, o general apontado como o chefe político-estratégico do golpe; o general Mário Fernandes, considerado o chefe tático-operacional da empreitada, o homem que dizia: “Estou Aloprando”. E, por fim, os coronéis, como Bernardo Romão Côrrea Netto e Mauro César Cid.
As provas de quase uma dezena de crimes na execução de duas operações
Romão Neto e Cid são vistos como os principais artífices da mobilização de seus colegas das turmas de 1997 (de Côrrea Netto) e de 2000 (de Cid) da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) para a execução de duas operações. A primeira foi a Copa 2022 – a neutralização do ministro Alexandre de Moraes – e a segunda, a operação psicológica para atacar os integrantes do Alto-Comando do Exército (ACE), que resistiam à ação de impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva. A coluna não conseguiu contato com as defesas dos oficiais investigados. Braga Netto nega o golpe. Cid confessou sua participação nos fatos.
Em suas conversas, os generais veem emergir do inquérito, desta vez, possíveis provas da prática de quase uma dezena de delitos. Há ali alguns comuns, como o uso de documento falso ou a suspeita de peculato, e outros propriamente militares, como possíveis reuniões ilícitas (art.165), a incitação à indisciplina (art. 155), o aliciamento para a prática de crime militar (art. 154), a crítica indevida (art. 166) e até mesmo duas operações militares feitas à revelia do comando (art.169). Todas essas condutas podem ser vistas pela PF como crimes meios necessários à execução do crime fim: o golpe de Estado.
Mas o pior para os generais foi a deslealdade à instituição e aos seus comandantes, aspectos ligados diretamente à honra militar. A fratura entre os que colocaram interesses pessoais acima daqueles do Exército e da Pátria parece não ter conserto. Braga Netto, Mário Fernandes, Romão Corrêa Neto e Cid seriam pessoas que apunhalaram os colegas pelas costas. Executam operações clandestinas e criminosas. Como poderiam levar os filhos de brasileiros à guerra? Daí a necessidade do Conselho de Justificação, cujo resultado tem de ser homologado pelo Superior Tribunal Militar (STM).
O comandante do Exército, general Tomás, e o chefe do Estado-Maior, Richard Nunes, decidiram que todos os envolvidos serão submetidos a tribunais de honra. Na cerimônia de recepção dos generais recém-promovidos, entre os quais o general Pedro Montenegro, futuro comandante militar do Sudeste (CMSE), ocorrida na quinta-feira, dia 28, o general Richard afirmou:
“Nossa comunicação estratégica tem sido confrontada por falsas notícias, conteúdos distorcidos, meias-verdades, postagens difamatórias, confundindo informação e desinformação, o que exige talento, serenidade e rigor para a preservação da nossa coesão, da hierarquia e da disciplina, e dos princípios e valores sobre os quais foi construída a reputação do Exército como genuína instituição de Estado”. Foi esse clima que muitos dos generais identificam como uma das causas para que tantos fossem capturados pelo discurso golpista.
Richard lembrou ainda que “ser cadete é cultuar a verdade, a lealdade, a probidade e a responsabilidade; é aprender a obedecer para poder comandar”. Trata-se de uma mensagem que ganha um novo sentido quando a PF descobre que os militares envolvidos no plano do golpe criaram uma Operação Psicológica (Op Psico), de acordo com a doutrina militar sobre o tema, para as ações de guerra a fim de levar confusão ao “inimigo, desestabilizar sua retaguarda e induzi-lo a tomar medidas que lhe são desfavoráveis”. O campo que se pretendia atacar aqui era o Alto-Comando do Exército e outros generais.
Uma operação de manual para encurralar os generais
Este foi o primeiro ato concreto para a execução do golpe bolsonarista. Trata-se de uma especialidade dos chamados Forças Especiais (FEs), os kids pretos. É no Comando de Operações Especiais (COpEsp) que fica o 1.º Batalhão de Ações Psicológicas (1.º B Op Psc), tropa especializada no tipo de ação que é descrita no Manual de Campanha C-45-4, do Estado-Maior do Exército. “As Op Psico constituem uma parte essencial do poder. Os chefes militares e políticos das nações têm utilizado, quer na paz, quer na guerra, as Op Psico como forma de persuasão ao longo da história”, afirma o documento.
Para o Exército, as “fronteiras físicas já cederam lugar à fronteira psicológica”. “Nesse contexto, a opinião pública assume papel relevante na tomada de decisão nos níveis político, governamental ou militar. A propaganda dessas operações é aquela que “procura influir em convicções mais profundas, tal como a decisão de abandonar a luta e render-se”. Ou, como reconhece o Manual de Campanha, entre os objetivos das OPs Psicos estão “enfraquecer, em caso de guerra, a vontade de grupos inimigos e o moral de suas tropas e Influenciar a opinião pública”, podendo ser dirigidas a três públicos: a população, o adversário e as própria tropas.
“A finalidade principal das Op Psico sobre o adversário é envolvê-lo em uma sensação de insegurança, de impotência e de descrença no seu êxito e, assim, desmoralizá-lo e levá-lo à rendição. Para isso, deve-se atuar sobre suas contradições de qualquer natureza e criar um vácuo entre ele e a população; o combatente deve ter a sensação de estar envolvido em um meio hostil, que lhe recusa o apoio dispensado e está convicto de sua derrota”, diz o Manual. Ele prossegue, ensinando que o “especialista em Op Psico seleciona as ideias-força, os temas, os símbolos e ‘slogans’ que serão empregados para estimular o público-alvo, baseando-se nas suas suscetibilidades e nos objetivos psicológicos”.
Das conversas de zap zap à ação: a execução da tentativa do golpe
Os oficiais acusados pela PF tinham consciência, segundo os investigadores, de que estavam envolvidos nessa ação clandestina, à revelia dos chefes, e, portanto, criminosa, segundo o Código Penal Militar (CPM). Ao determinar uma ação militar sem ordem superior, os envolvidos podem ter incorrido no artigo 169 do CPM, que determina prisão de 3 a 5 anos. E operação psicológica contra os generais houve, segundo a avaliação de seus chefes.
Trata-se de situação diferente de quem só conversou no WhatsApp e desejou que o petista Lula da Silva – alvo da Plano Punhal Verde e Amarelo – não subisse a rampa. A história da operação psicológica desenvolvida pelos militares está contada no relatório da Polícia Federal.
Foi assim que, em outubro de 2022, o coronel Fabrício Moreira Bastos, então servindo no Centro de Inteligência do Exército (CIE), órgão de assessoramento do general Marco Antônio Freire Gomes, o comandante da Força, começou um diálogo com o coronel Corrêa Netto, então assessor do comandante militar do Sul, o general Fernando José Sant’Ana Soares e Silva. Na manhã de 16 de outubro, Bastos enviou uma série de links com manchetes sobre decisões judiciais relacionadas à eleição presidencial de 2022. E escreve: “Velho, já passou da hora do BOLSONARO fazer alguma coisa”.
Bastos revela seu desejo: “Velho, manda prender todo mundo do TSE e STF”. Corrêa Netto diz que Bolsonaro não pode contar com o Alto-Comando para essa tarefa. O que poderia ter ficado apenas em uma conversa em pouco tempo assume aspectos de uma Op Pscio. É neste contexto que o Corrêa Netto resolve unir seus colegas coronéis da turma de 1997 para confeccionar a Carta ao Comandante. Era a primeira maneira de emparedar Freire Gomes, que se opunha ao golpe.
Reuniões em Brasília foram feitas em novembro, após o segundo turno da eleição, para definir os detalhes do plano. As mensagens entre os oficiais – quase todos FEs – envolvidos se sucedem por dezenas de páginas do relatório da PF. Os coronéis decidiram se encontrar em Brasília com um objetivo: reunir FEs em funções-chave para influenciar os chefes.
Corrêa Netto e Bastos trataram das ações que seriam adotadas, “dentre elas, a utilização de técnicas de forças especiais no campo de controle da informação, a criação de um denominado ‘gabinete de crise’, no Comando de Operações Terrestres (Coter)”. Na época, o Coter era chefiado pelo general Estevam Theóphilo, um dos indiciados no inquérito. No fim de outra mensagem, segundo os federais, os investigados “evidenciaram que o objetivo final das ações seria estabelecer um vínculo de confiança entre o então presidente Jair Bolsonaro e o comandante do Exército Freire Gomes para cooptar as Forças Armadas na empreitada criminosa”.
Assim, no dia 15 de novembro de 2022, os investigados inauguram outra etapa da Op Psico. Corrêa Neto envia ao coronel Bastos as fotografias com nomes de generais da ativa do Exército Brasileiro, que estavam se posicionando contrários ao golpe de Estado. Os três primeiros generais identificados por Corrêa Netto eram os comandantes militares do Nordeste, Richard Nunes, do Sudeste, Tomás Paiva, e o chefe do Estado-Maior, general Valério Stumpf.
No dia 23, Corrêa Netto vai mais longe e escreve a Bastos: “Thomaz, Richard e Stumpf tinham que ser exonerados, presos, sei lá, qualquer merda, antes do GFG passar o Comando EB (Exército Brasileiro).”. GFG era como o coronel se referia ao general Freire Gomes. Eles e outros dois generais seriam, posteriormente, expostos em um programa de rádio e nas redes sociais pelo influenciador Paulo Figueiredo, neto do ex-presidente João Figueiredo e um dos indiciados no inquérito. O Planalto não teve coragem de enfrentar os generais, talvez, porque soubesse que se tentasse fazê-lo, o “pau ia quebrar”.
Ao mesmo tempo, o grupo terminava a redação da Carta, conforme mostrou a análise do celular apreendido em poder do tenente-coronel Ronald Ferreira de Araújo Júnior. Vários coronéis e tenentes-coronéis se envolveram com a confecção do documento – o Exército chegou a indiciar quatro dos investigados pela PF em um Inquérito Policial-Militar sobre a carta, mas agora surgiram os nomes de novos envolvidos com o documento, como o coronel Sérgio Ricardo Cavaliere de Medeiros e o tenente-coronel Araújo, o que pode levar à reabertura do IPM do caso.
Cavaliere queria mostrar o documento ao então ministro da Defesa, general Paulo Sérgio de Oliveira. Em um dos diálogos existe a exata dimensão de que as conversas evoluíram para a ação. Trata-se de uma conversa que ocorreu na manhã do dia 28 de novembro entre o coronel Cavaliere e o tenente-coronel Ronald a respeito da carta.
Cavaliere afirma que teriam conseguido que o documento fosse enviado somente ao comandante do Exército. Segundo a PF, ele “evidencia o dolo de propagação do conteúdo com o objetivo de pressionar o Alto-Comando do Exército e incitar os militares a aderir ao golpe”. Diz o oficial: “Logicamente que, ‘acidentalmente’, irá vazar”. Ele ainda afirmou que sua turma teria feito “uma Op Psico forte” (Operação Psicológica). É aí que o oficial demonstrou que sabia ter ultrapassado a fronteira da mera conjectura, dos atos preparatórios, para iniciar a execução de uma operação militar.
Afirmaram ainda os delegados da PF: “A intenção da organização criminosa em ‘vazar acidentalmente’ o documento foi executada pelo influenciador com forte penetração no meio militar, Paulo Figueiredo”. Os acusados incluíram ainda outros generais na campanha para influenciar o ACE, como Guido Amin, diretor de Ciência e Tecnologia, e André Luis Novaes Miranda, então comandante militar do Leste.
Não ficou só nisso. Às 11h08 do dia 28 de dezembro, Corrêa Netto enviou uma mensagem pedindo para Mauro Cid que assistisse ao programa de rádio no qual Paulo Figueiredo trabalhava: “Assista o Pongo nos Is hoje. O Prec, o Espora Dourada e o Bigode serão expostos”. Cid responde que já sabia que isso ia acontecer: “Eu sei...Hahhahaha”. Prec era uma referência ao general Tomás, um precursor paraquedista, já Bigode é uma referência a Richard e Espora Dourada tratava-se de Stumpf, originário da Cavalaria.
O general Fernando Soares, atacado por seu subordinado Corrêa Netto e hoje na reserva, disse à coluna que ficou surpreso com a quantidade de oficiais da ativa envolvidos no caso e listados pela PF. “Ele (Corrêa Netto) podia ter me procurado, mas não me procurou.” Segundo ele, o ACE sempre enfatizou a necessidade de o Exército ficar fora das disputas políticas. Freire Gomes chegou a pedir aos generais que se abstivessem de contatos políticos e até com jornalistas nos meses que antecederam a eleição de 2022.
A exemplo de Soares, o general Stumpf também teria sido enganado por seu assistente, o coronel Márcio Nunes de Resende, que ajudou a reunir os colegas conspiradores em Brasília. É, por isso, que muitos se perguntam, hoje como um Exército pode tolerar esse comportamento de quem gozou da confiança dos chefes e teve acesso a debates e a temas sensíveis?
Os ataques para desmoralizar os generais – chamados de covardes e melancias – foram tantos, muitos dos quais ordenados diretamente por Braga Netto, que, no dia 18 de novembro de 2022, Freire Gomes divulgou uma nota oficial para defendê-los da acusação de que seriam “comunistas”. A ação dos conspiradores usava fotografias de generais em memes distribuídos em grupos de WhatsApp e em mensagens enviadas para os celulares dos generais.
Até mesmo oficiais recém-promovidos, como o general de brigada Kurt Ewerton Werberich, comandante da 13ª Brigada de Infantaria Motorizada, com sede em Cuiabá, foram alvos da campanha. Ele e outros receberam mensagens com sua fotos instigando-os a “não prestar continência aos comunistas”.
Nas mensagens, os golpistas demonstram sua contrariedade com os generais. O coronel Cavaliere conversou com um colega e chamou as escolas em que os chefes se formaram de “escolas de prostitutas”. E disse que todos foram “covardes”. No dia 28 de dezembro, o general Mário Fernandes procurou, o general Júlio César de Arruda, então escolhido por Lula para chefiar o Exército, para convencê-lo a dar o golpe. Acabou expulso por Arruda de seu gabinete.
Depois da posse de Lula, os FEs ainda tentaram manter a operação. No dia 4 de janeiro de 2023, Cavaliere mandou novas mensagens para Cid. Perguntou se “ainda tem algo para acontecer? Cid respondeu e apagou as mensagens. E o colega voltou a questioná-lo: “Coisa boa ou coisa ruim?” Cid então conclui: “Depende para quem. Para o Brasil é boa”. A PF registrou no inquérito que esse “diálogo acontece quatro dias antes do 8 de janeiro de 2023, quando há uma nova tentativa de consumação do golpe de Estado e Abolição violenta do Estado de Direito”.
Diante do fracasso final, Cavaliere conclui: “Fomos covardes”. E Cid afirmou: “Fomos todos. Do PR (Presidente da República) e os Cmt F (comandantes da Força)”. Logo depois, Mauro Cid afirmou que “64 não precisou de ninguém assinar nada”.
São essas ações e diálogos que os generais consideram uma “traição abjeta” e “sórdida”. Ligados ao general Mário Fernandes, que os teria arregimentado, os conspiradores trocaram a legalidade e a lealdade aos comandantes e à Instituição pela lealdade a uma pessoa, ao chefe de uma organização que quis se opor ao Exército. Deixaram, segundo seus pares, de cultuar a verdade e a probidade não por qualquer defeito do currículo militar, mas por uma questão de caráter. Acabaram se mostrando incapazes de mobilizar as organizações militares. Vão responder pelo que fizeram. E vai ser bom para o Exército.
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