Mark Milley, o chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas dos EUA, passou no dia 29 de setembro o cargo para o general da Força Aérea Charles Quinton Brown Jr. A cerimônia em Fort Myer, na Virgínia, passaria quase despercebida em outros tempos. Mas estes são tempos de crise. E os militares, lá como cá, desempenharam um papel importante durante as tentativas de se rasgar a Constituição, em Washington e em Brasília, com as invasões do Capitólio e das sedes dos Três Poderes.
No mesmo dia 29, a Polícia Federal lançava a 18.ª fase da Operação Lesa Pátria e varejava a casa do general da reserva Ridauto Lúcio Fernandes, um Força Especial. Apreendeu celulares, armas e o passaporte do militar que gostava de afirmar em mensagens de WhatsApp, conforme revelou a jornalista Malu Gaspar, sua predileção pela palavra neutralizar. “Se achar que minha Pátria estiver precisando, providenciarei para que aquele que a esteja agredindo seja neutralizado. Adoro essa palavra, neutralizado.”
Ridauto foi surpreendido em vídeos caminhando na Esplanada e vestindo verde e amarelo no dia 8 de janeiro. Achava tudo bonito. Até o gás lacrimogêneo da PM. Foi ofendido pelo coronel Adriano Camargo Testoni, seu colega de turma da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman). “Forças Armadas filhas da p... Bando de generais filhos da p... Vanguardeiros de m... Covardes. Olha o que está acontecendo com a gente. Freire Gomes (ex-comandante do Exército), filho da p... Alto Comando do car.... Olha aqui o povo, minha esposa. Esse nosso Exército é uma m... Vão tudo tomar no c...” Palavras inequívocas.
Testoni hoje é alvo de ação no STF – seu caso foi enviado ao Supremo pelo Superior Tribunal Militar, depois de ser indiciado em um IPM aberto pelo Comando Militar do Planalto. Ridauto, que depois da intentona do dia 8 passou a frequentar lives nas quais evitava qualquer crítica à atuação da Justiça na investigação da baderna em Brasília, tornou-se o primeiro general a ser alvo de buscas da PF, na Lesa Pátria. Meses antes, colegas de Ridauto flertaram com o golpe.
Descontentes com a atuação do TSE no pleito que elegeu Luiz Inácio Lula da Silva, generais do Comando de Operações Terrestres (COTer) teriam produzido um estudo sobre a intervenção no Judiciário, com o afastamento de ministros considerados hostis a Jair Bolsonaro. Havia ainda oficiais dos Comandos Militares do Norte e do Oeste que se manifestavam contra o presidente eleito em redes sociais ou em abaixo-assinados. No Alto Comando, uma minoria simpatizava com ideias exóticas – quatro ou cinco, a depender dos relatos ouvidos pela coluna.
A necessidade de se reconstruir a unidade do Exército fez com que o olhar sobre quem pensou em ultrapassar o Rubicão fosse deixado de lado. A iniciativa de encontrar erros e delitos passou do STM ao Supremo. Na Força Terrestre, as descobertas da PF, como a dos esquemas dos espertalhões do Pix e da venda das joias e da ação do ex-major Ailton Barros, aumentaram ainda mais a distância entre os legalistas – chamados de melancias pelos radicais – e os defensores do ex-presidente.
O movimento de pacificação fez ainda exemplos de inconformismo com as algazarras de Bolsonaro e seus planos desaparecerem para a população. A coluna contará aqui dois casos importantes de generais que disseram não. O primeiro aconteceu na maior crise militar da Nova República, a que levou à demissão do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e dos comandantes das três Forças. A gravidade do momento pode ser aferida pela história da decisão tomada pelo general José Luiz Dias Freitas.
Então chefe do COTer, Freitas recebeu a visita do general Walter Braga Netto, recém-nomeado ministro da Defesa. Ele queria convidá-lo a assumir a Força Terrestre. “Não posso. Não vou durar uma semana no cargo”, disse Freitas, rejeitando o comando do Exército. A razão era que ele não se sujeitaria aos caprichos do presidente.
Sábia decisão? Um mês depois, o Exército se viu às voltas com o caso de Eduardo Pazuello, general da ativa que discursou em um comício de Bolsonaro, no Rio. Freitas passou à reserva e foi viver no interior do Paraná, onde começou a prestar serviço voluntário em uma Santa Casa. Pazuello se elegeu deputado pelo PL em 2022.
Ainda em 2021, o general Paulo Roberto Rodrigues Pimentel comandava a Aman quando Bolsonaro começou suas motociatas pelo País. O presidente teve então a ideia de entrar com uma delas, vinda de Resende (RJ), pelo portal monumental da Academia no dia da cerimônia de entrega dos espadins, em 14 de agosto de 2021. Era a primeira vez, desde o começo da pandemia de covid-19, que a tradicional festa se realizaria com a presença de familiares e autoridades na escola.
Pimentel, um Força Especial, foi abordado pelos ministros Luiz Eduardo Ramos e Braga Netto. Os dois contaram a intenção do presidente. E tentaram convencê-lo a permitir a algazarra. Ele respondeu que era inaceitável. Só havia um jeito de Bolsonaro entrar com a motociata na Aman: nomeando outro general para comandar a escola. Pimentel sabia que se deixasse a balbúrdia acontecer cobriria seu comando de vergonha; se recusasse, arriscava a carreira – era general de brigada e ia disputar a promoção para a terceira estrela.
O general recebeu apoio de outros oficiais. Uma solução foi encontrada: a motociata se concentrou fora dos muros da Aman. A espada do general não tinha partido. Servia aos governos como representantes do Estado e não a um líder. Em momentos de crise, é preciso coragem para cumprir a obrigação. Terminada a cerimônia militar, o presidente deixou a academia em um helicóptero. Pimentel acabou promovido em 2022 e foi comandar a 3ª Divisão do Exército, a Divisão Encouraçada, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul.
Ele é irmão de Carlos Alberto Rodrigues Pimentel, o general que comandava a Brigada de Operações Especiais, com sede em Goiânia. Era Carlos que o ex-major Ailton Barros queria convencer a participar do golpe para fechar o STF, conforme registrado em mensagem encontrada pela PF dirigida ao coronel Elcio Franco, outro Força Especial, ex-assessor de Pazuello e de Bolsonaro. Nenhum dos irmãos se deixou levar pelo canto da sereia que terminou no 8 de janeiro.
Assim também foram os comportamentos dos generais Tomás Paiva, Richard Nunes, Guido Amin, Valério Stumpf e outros, chamados de melancia pelos radicais bolsonaristas. Mas todos escolheram o silêncio. O Exército não era monolítico, como reconhecem analistas como o historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva, professor da UFRJ. Nem seus generais em conjunto estavam à disposição de Bolsonaro para qualquer tipo de aventura. As escolhas deles foram fruto de decisões pessoais?
O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro Filho, disse na semana passada que é chegada a hora de separar o “joio do trigo”. É verdade que os acampamentos em frente aos quartéis foram tolerados e as urnas eletrônicas contestadas por militares. Não se vislumbrou que a escalada de violência levaria ao 8 de janeiro. Para Múcio, é impróprio ligar o substantivo militar ao adjetivo golpista. É preciso recolher os fatos. Quem enxerga apenas conivência com o golpe em todo fardado precisa ouvir os silêncios. E não só o que se diz na CPMI do dia 8 de Janeiro, que chega ao fim neste mês.
É que há uma diferença entre não gostar de Lula e planejar um golpe. Assim como há entre a quietude e o silêncio. Faltou aos militares brasileiros a afirmação aberta da legalidade? Ao passar para a reserva, Milley, que assumira o cargo em 2018, poderia ter se prolongado sobre a missão no Afeganistão, ou sobre o combate ao Estado Islâmico e aos grupos terroristas na África. Ou ainda sobre a ajuda à Ucrânia.
Mas os tempos são outros: Milley preferiu enfatizar a defesa da Constituição. Disse que ela dá um sentido ao serviço do militar americano. “Ela é o documento que todos nós, fardados, juramos proteger e defender contra todos os inimigos – estrangeiros e internos. Essa é uma verdade que passa de geração em geração. E nós, uniformizados, estamos dispostos a morrer para passar a Carta à próxima geração.”
O general prosseguiu afirmando que a Constituição faz do militar americano um ser único. “Nós não juramos pela nossa Pátria. Nós não juramos por nossa tribo. Nós não juramos por nossa religião. Nós não juramos fidelidade ao rei ou à rainha ou a um tirano ou a um ditador. E nós não juramos a um aspirante a ditador. Nós não juramos fidelidade a um indivíduo. Nós juramos fidelidade à Constituição, e prestamos juramento à ideia que é a América, e estamos dispostos a morrer para protegê-la.”
Milley foi o homem que em 12 de janeiro de 2021, após o ataque ao Capitólio, divulgou uma carta com outros sete generais. Tinha 20 linhas. Começava assim: “O povo americano tem confiado em suas Forças Armadas para protegê-lo e à sua Constituição por quase 250 anos”. O documento afirmava que o ataque era um “assalto direto ao Congresso e à ordem”. “Testemunhamos eventos que são inconsistentes com a obediência às leis, ao direito de liberdade de opinião e de reunião, pois estes não dão a ninguém o direito de usar a violência, a sedição e a insurreição.” Nada mais claro.
Ele e seus colegas fizeram uma profissão de fé: “Nós defendemos a Constituição. Qualquer ruptura do processo constitucional não é apenas contra nossas tradições, valores e juramento, é contrário à lei”. Eles mostraram que a defesa da legalidade é um imperativo de quem ocupa tais cargos. A isenção e o apartidarismo não lhes podem servir para fechar os olhos à violência do lado com o qual se simpatiza ou para reconquistar a unidade institucional. Não há detergente melhor do que a luz solar, dizia Louis Brandeis. Assim como não há nada mais difícil do que escutar o silêncio.
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