Foram quase três anos de uma investigação que começou depois de um agente federal presenciar em uma padaria no Alto de Pinheiros, na zona oeste de São Paulo, uma conversa entre um advogado e o comerciante Bruno Amorim de Souza. “Estou fazendo umas fitas do progresso”, teria dito Amorim. O tal “progresso” se tratava, segundo a Força Integrada de Combate ao Crime Organizado (FICCO), da PF, de uma expressão usada pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) para designar o tráfico de drogas.

Ao término de 34 meses de inquérito, a FICCO entregou o relatório final do inquérito da Operação Latus Actio 1 e 2, que investigou as relações de produtoras de funk com o crime organizado, com 16 indiciados por lavagem de dinheiro, organização criminosa, crimes contra a ordem tributária, explorar loteria clandestina e agiotagem. E constatou que um dos indiciados, o empresário Henrique Alexandre Barros Viana, o Rato da Love Funk, tem como sócios para a venda de show e promoção de artistas integrantes do alto escalão do PCC.
Durante as investigações, os federais haviam localizado mensagens e documentos que mostravam as amizades de Vianna. O inquérito foi além. “Não há dúvidas”, escreveu o delegado Alexandre Custódio Neto, diretor da FICCO, que o produtor de artistas como os MCs Dieguinho, CL, Paiva e Paulin da Capital, pertence a uma organização criminosa que cometia crimes contra a ordem tributária, explorava loterias clandestina e lavava dinheiro do crime organizado.
Segundo a PF, entre 2023 e 2024, recursos de origem ilícita foram movimentados, ao menos em parte, nas contas bancárias da empresa Love Funk Shows Ltda. E concluiu: ”No que concerne aos investimentos feitos no ‘Grupo Love Funk’ por terceiros que possuem antecedentes criminais por delitos como organização criminosa, tráfico ilícito de drogas e crimes contra o patrimônio, há fortes indícios de que Henrique Alexandre Barros Viana associou-se a alguns deles em seus negócios".

Esses “negócios” envolveriam tanto no ramo musical e de entretenimento como a aquisição de fazendas, criação de gado e o patrocínio de times e jogadores de futebol. E quem seriam os sócios do Rato da Love? O relatório do inquérito 2021.0075708 responde: Gratuliano de Sousa Lira, o Quadrado, Moisés Teixeira da Silva, o careca ou Tatuzão, e Márcio Geraldo Alves Ferreira, o Buda. E quem seriam esses personagens da crônica policial?
Gratuliano foi condenado a 11 anos de prisão por lavagem de dinheiro do PCC. Ele foi investigado na Operação Sharks, do Grupo de Atuação especial e Combate ao crime Organizado (Gaeco), que desarticulou um esquema que movimentou R$ 1 bilhão do tráfico de drogas da facção. Gratuliano atuava no Setor da FM, responsável pelo comércio de drogas da organização, e no Setor do Bob, que cuidava da venda de maconha. Também mantinha “imóveis alugados pela organização criminosa e que eram utilizados como ‘casas-cofre’”. Ele cuidaria em sociedade com Rato de uma fazenda em Cajazeiras, na Paraíba, e do gado criado ali.
Moisés foi um dos líderes da quadrilha que furtou R$ 164 milhões do Banco Central de Fortaleza em 2005., o maior da história do País. Condenado a 16 anos de prisão, ele cumpriu a pena. A PF encontrou repasses de dinheiro a Moisés feitos por uma das empresas de Rato. “Dentre as informações extraídas do terminal telefônico analisado, foram encontradas 4.962 mensagens trocadas no período de 23 de março de 2023 a 7 de março de 2024 entre Henrique Barros Viana, vulgo Rato, e contato de nome “Moises”, este último tratando-se do nacional de nome Moisés Teixeira da Silva”, escreveu o delegado.

E Buda? Este é assim descrito pelos federais: “Dono de extensa ficha criminal, encontra-se atualmente preso na Penitenciária de Presidente Venceslau 2, localizada na área rural do município de Presidente Venceslau/SP”. É neste estabelecimento que o Estado isola as principais lideranças do PCC que estão fora do Sistema Penitenciário Federal. Fli lá que Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, permaneceu entre 2006 e 2019.
Além deles, a FICCO achou indícios de que o Rato da Love Funk teria outro parceiro nos negócios. Trata-se de Ronaldo Pereira Costa, preso em 2021 pela PF em Florianópolis. Ele era acusado de participar das execuções de Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue, e de Fabiano Alves de Souza, o Paca, dois líderes do PCC mortos em um acerto de contas em 2018. Também foi um dos alvos da Operação Match Point, que investigou o braço da facção no tráfico internacional de drogas em Santa Catarina.
Para a PF, “portanto, em relação a tais indivíduos é possível concluir que estão presentes os indícios de constituição de uma organização (ou associação) criminosa com a finalidade de praticar lavagem de dinheiro, consubstanciada no investimento de recursos de origem ilícita no ramo do entretenimento (produção musical, de shows/ eventos, videoclipes etc.), assim como noutros negócios administrados pelo casal Henrique Alexandre Barros Vianna e Daniella Cristian Vianna”.

Além do Rato da Love Funk, Moisés, Gratuliano, Buda, Costa e Danielle também foram indiciados sob a acusações de lavagem de dinheiro e organização criminosa. A FICCO esmiuçou as finanças das empresas do produtor musical, que foi alvo ao lado de suas empresas de dez comunicações feitas por bancos a respeito de movimentações suspeitas de recursos entre 21 de março de 2022 e 31 de agosto de 2023.
“O investigado não apresentou declarações de Imposto de Renda à Receita Federal, todavia constam diversos negócios de compra e venda de imóveis” em seu nome. Só uma de suas empresas, a Formato Funk Agenciamento Musical movimentou R$173.258.682,90 no mesmo período. “Cresceu acima do padrão, aumentando suas movimentações financeiras em mais de 26.000% em apenas 3 anos, justamente, em período pandêmico e pós pandêmico”, consignaram no relatório os federais.
De acordo com a PF, a Subsecretaria da Receita Municipal de São Paulo lavrou 14 autos de infração que totalizam R$ 11.512.898,63 em tributos e multas. Ainda segundo os federais, os autos de infração foram lavrados pelo motivo de que “não houve emissão de documentos fiscais para parte dos serviços prestados nos anos de 2019 a 2023”, conforme consta no “Formulário Integrante do regulamento do processo Administrativo Fiscal” da Comunicação de Indícios de Crimes contra a Ordem Tributária (CCOT).

A investigação ainda flagrou mensagens entre os indiciados nos quais eles envolviam a direção do PCC para a resolução de conflitos em relação à promoção dos artistas e a divisão do dinheiro arrecadado com os shows. Há registros de ameaças de morte. Um dos casos foi uma conversa entre o Rato da Love e um homem identificado como Dog, que falava de um celular registrado nos Estados Unidos. Os dois discutem sobre a compra de “60% do WN”. Trata-se de Willian Nogueira de Matos , o DJ WN.
Rato diz que não quer mais a sociedade na gestão da carreira do artista. Dog reage e diz que ia colocar o empresário “no prazo”, bem como que “a final da leste” iria ligar para o Rato da Love. Final da Leste é como bandidos da facção chamam a chefia do PCC na zona leste de São Paulo, mesma região onde está a sede da Love Funk. Alguns minutos depois ao aviso, uma tentativa de chamada em grupo é estabelecida por meio do WhatsApp às 20h43 de 7 de março de 2024.
Em outra oportunidade, o Rato da Love Funk enviou a Moisés, o ladrão do Banco Central, uma reclamação contra um preso identificado como Bahia. “Esses vermes tão tentando roubar nossa brisa”. Moisés responde: “Ah, mano...que tá preso. Vai ficar ouvindo as ideia? Se tiver ideia. Oh, meu, esquenta com isso não meu. Aí, tem que provar, ô. Nego vai, já era”. Rato responde: “Ele fica armando tabuleiro, dentro da cadeia.” Armar tabuleiro seria providenciar o julgamento do bandido pelo tribunal do crime.

Em outro diálogo, os dois trataram das divergências com o empresário do MC Lan. O Rato da Love comenta, então, que, no passado, era mais fácil resolver esses conflitos, pois não tinha “...’esses bagulho’ de comando aí no meio de tudo...”. Moisés concorda, dizendo ser desse tempo, em que “era modelo Detenção”, uma referência aos acertos de conta na antiga Casa de Detenção, no Carandiru, em São Paulo. Para a PF, ele, um ex-ladrão de bancos, tem pleno conhecimento dos negócios que Rato mantém com o PCC".
Outro núcleo investigado pelos federais envolvia o empresário Rodrigo Inácio de Lima Oliveira, o Rodrigo da GR6, a maior produtora de funk do Brasil. Contra ele os policiais não encontraram provas suficientes de envolvimento com a lavagem de dinheiro de bandidos do PCC, apenas indícios de proximidade entre pessoas físicas. Isso fez com que a PF indiciasse o empresário por lavagem de dinheiro em razão da sonegação de tributos. Oliveira se manteve em silêncio quando foi interrogado pela PF.
Der acordo com a PF, entre 9 de fevereiro de 2022 e 16 de novembro de 2023, Rodrigo foi citado em 39 de bancos ao Coaf “ora como sócio, procurador ou representante legal da empresa que realiza a transação financeira, ora como titular da conta, remetente ou destinatário do recurso”. O relatório prossegue, afirmando que a GR6 Eventos - Produtora, Gravadora e Editora LTDA – empresa de Rodrigo – aparece em 321 comunicações entre 09 de dezembro de 2019 e 14 de dezembro de 2023 como titular da conta comunicada, remetente ou destinatário de recursos de terceiros.

De acordo com a PF, Receita Federal lavrou um auto de infração “em desfavor de Rodrigo Inácio de Lima Oliveira relativo (somente) ao ano-calendário de 2019, no valor de R$43.934.441,19. E a GR6 Eventos foi alvo de uma fiscalização da Subsecretaria da Receita Municipal de São Paulo que lavrou 29 autos de infração, que totalizam R$ 42.233.789,62 em tributos sonegados e multas. Com Rodrigo Inácio foi indiciado ainda Muller Santos de Souza. A defesa de Rodrigo Inácio diz que eventuais questões tributárias serão sanadas por ele e por seu sócio (leia abaixo mais informações).
Em outra frente da investigação, os federais indiciaram influencers e MCs acusados de promover loterias ilegais suspeitas de lavar dinheiro do crime organizado. Entre os acusados estão Ryan Santana dos Santos, o MC Ryan, e seu amigo, o influencer Bruno Alexssander Souza Silva, o Buseira, o homem que deu em 2023 um colar de R$ 2 milhões de presente para o atacante Neymar, do Santos.
Ryan é um dos símbolos da cena do funk na cidade de São Paulo. Dono de um dos principais pontos de encontro desse gênero musical, o Bar do Bololô, no Tatuapé, na zona leste, ele conta com 14 milhões de seguidores em sua conta no Instagram, onde ostenta a amizade com Neymar e cantor Gusttavo Lima, além de suas mulheres, seus carros e seu avião. Durante a apuração, foram flagrados achaques praticados por policiais civis contra os funkeiros.

Outro influencer indiciado foi Wesley Rodrigo Góes Venceslau, o Wesley Alemão. Dono da empresa WRG Venceslau Digital Influencer, Alemão mantinha negócios com o Rato da Love Funk, além de rifas na internet, formando uma espécie de loteria clandestina em parceria com outro indiciado no caso: o empresário Jonathan Veronezi, dono do site sortecomigo.com.br, que era utilizado para aquisição das cotas das “rifas” promovidas por Wesley Alemão em suas redes sociais.
A FICCO também acusou o empresário Alexandre da Silva Santana, o Gugu da GR6, que agencia diversos artistas de funk (MCs, DJs) que são contratados pela GR6 Eventos. Apesar do apelido, ele não tem qualquer participação societária, seja de direito ou de fato, na produtora de Rodrigo Inácio. Essa é a mesma condição do empresário Vitor Hugo dos Santos, que também agencia artistas contratados pela produtora.
Eles e o empresário Jonatas Dias dos Santos foram indiciados por lavagem de dinheiro e promoção de loterias clandestinas. Já o comerciante Bruno Amorim de Souza, aquele cuja conversa na padaria desencadeou a investigação, acabou indiciado por agiotagem e lavagem de dinheiro. Em junho de 2020, ele havia sido preso em flagrante por tráfico de drogas, durante cumprimento de mandado de busca e apreensão pela Polícia Civil de São Paulo. Bruno alegou inocência.
Acusados alegam inocência e negam sociedades

Também alegaram inocência Gugu da GR6 e Vítor Hugo. Jônatas se manteve em silêncio ao depor e se negou a entregar a senha de seu celular. A reportagem não conseguiu localizar a defesa de Wesley Alemão. Segundo a PF, em uma aparente iniciativa para “regularizar” suas atividades, ele passou a promover os sorteios de suas rifas por meio de uma parceria com a empresa VIACAP. A defesa de Veronezi também não foi localizada, bem como a do MC Ryan e do influencer Buseira.
A criminalista José Luís Oliveira Lima, que cuida da defesa do empresário Rogério Inácio, informou que “a GR6 é a maior produtora de música urbana da América Latina, gerando mais de 200 empregos diretos e indiretos com um casting de mais de 120 artistas ativos”. Ainda de acordo com o criminalista, a empresa tem em seu quadro de colaboradores, profissionais jovens periféricos que recebem suporte e capacitação da empresa na formação de carreira dos mesmos”.
Oliveira Lima ressaltou que “Rodrigo Inácio de Oliveira, é um homem sem mácula na sua vida”. E concluiu: “A investigação demonstrou o seu comportamento correto. Inicialmente foram feitas ilações despropositadas que logo caíram por terra. Eventual questão tributária será honrada pela GR6 e seu sócio”.
A advogada Ilana Martins, que defende Muller de Souza, informou que ele “prestou serviços à empresa GR6 até agosto de 2024, sempre sem exercer poderes de gestão, tendo se desligado para seguir outros projetos pessoais” Ainda segundo a defesa, durante o tempo em que esteves na GR6, “o Sr. Muller manteve condutas pautadas pela legalidade, contribuindo para o crescimento legítimo da empresa, atualmente reconhecida como a maior produtora de funk do país”.
A defesa prosseguiu afirmando que que Muller foi surpreendido com a deflagração de uma operação da Polícia Federal. “Convicto de sua inocência, o Sr. Muller colaborou plenamente com as investigações, prestando depoimento por mais de duas horas para esclarecer a legalidade das atividades da empresa.” A advogada lembrou que, após quase um ano de investigações, “o relatório final da PF afastou a versão inicial, concluindo que não há evidências que liguem a empresa GR6 ou o Sr. Muller a membros do PCC”.
E concluiu: “O relatório aborda, unicamente, uma questão tributária da empresa, cuja discussão ainda está pendente com o fisco. Esse assunto não diz respeito ao Sr. Muller, uma vez que ele não exercia funções de gestão, nem lhe foram atribuídos poderes de decisão ou autonomia na empresa.”
A coluna não conseguiu localizar as defesas de Bahia, Buda, Moisés, Gratuliano, Costa, Daniella e do Rato da Love Funk. A coluna teve acesso, porém, aos depoimentos do empresário e de sua mulher à Polícia Federal. Os dois negaram ter outros sócios nas empresas do Grupo Love Funk
O Rato da Love afirmou que Gratuliano somente lhe ajuda com seus investimentos em Cajazeiras. “Ele é um amigo meu de longa data, né? E ele me trouxe uns investimentos, que pra mim foi interessante. É, vamos criar uns boi ali? Eu falei, demorou, vamos lá ver. Aí fui lá, olhei, mas para criar os boi eu tive que comprar umas terras, as terras eu comprei lá, ele já tinha lá da família dele umas terra. Ele tem uns boi lá também, junto com a família dele. Só que eu comprei meus bois e comprei minhas terras”.

Trata-se da mesma versão apresentada por Gratuliano em suas declarações. Em relação a Moisés, o Rato da Love Funk afirmou que o conheceu no bairro onde morava. “A gente é amigo do bairro, entendeu?”. Ele negou que o amigo seja seu sócio, mas disse que ambos pretendem formar uma sociedade. “Ele me ajudou, ele me ingressou uns artista meu numa série famosa aí da Netflix, colocou música minha lá, e ele é um cara inteligente, então eu estou tentando trazer ele pro meu lado, até mesmo em sociedade”.
Ele revelou que pretende incluir Moisés na sociedade da Portuga Records. “Eu vou colocar ele, porque ele é inteligente, ele sabe cuidar, sabe fazer as coisas acontecer.” Moisés também negou ser sócio do Rato da Love Funk ao ser ouvido pela PF. Sobre Costa, o empresário também disse que o conhece desde criança que ele era um “moleque”, quando ele passou um tempo vivendo na sua casa. “A gente tem um carinho por ele, independente do que ele estar envolvido, aí não sei também se ele é culpado ou não.”
Sobre Buda, o empresário afirmou que não “possui vínculo de amizade ou de negócios com ele, embora tenha recebido recado de dentro da prisão”. Disse ainda que o caso de Buda, é algo “que acontece muito no funk (...) geralmente um artista estoura, explode, e aparece alguém querendo falar que é dono de um artista”. Daí a razão das ameaças.