Com um casaco preto, o presidente Jair Bolsonaro conseguiu o que queria: levou seu povo às ruas e o misturou às Forças Armadas. O palanque militar ao lado do Forte de Copacabana foi tomado por apoiadores de Bolsonaro com camisetas verde e amarelo enquanto o locutor acentuava o nome do candidato e o público respondia: “Mito!” O presidente desceu do palanque e foi cumprimentar seus apoiadores enquanto os canhões do Exército disparavam suas salvas.
Tudo debaixo dos olhares de dois integrantes do Alto Comando do Exército, o comandante militar do Leste, general André Luiz Novaes, e o chefe do Departamento de Ensino da Força Terrestre, general Flávio Marques Barbosa, além de oficiais generais da Marinha e da Força Aérea. O palanque do evento militar se transformou em palco de evento partidário, com a presença de políticos e apoiadores, como o empresário Luciano Hang. A distância entre o carro de som onde Bolsonaro discursaria e o palanque militar que reuniu as autoridades militares passou despercebida de quem esteve na orla.
O general Novaes esteve de manhã no Forte de Copacabana. Voltou à tarde para o evento militar. Enquanto a esquadra desfilava e a esquadrilha da fumaça fazia sua demonstração, o presidente se aproximava com sua motociata. Tudo junto e misturado.
Encerrada a cerimônia militar, Bolsonaro rumou ao trio elétrico e discursou a cerca de 200 metros de distância dos generais. Manteve-se contido em suas críticas ao Supremo Tribunal Federal e ao Congresso. “Vamos convencer quem pensa contrário”, disse. Esse era seu objetivo principal. Ele sabe que sem isso não será reeleito. E prometeu para seus apoiadores que cai colocar “dentro das quatro linhas” todos que ousarem ficar “fora delas”. Por fim, reforçou o discurso anticomunista para atingir seu principal oponente, Luiz Inácio Lula da Silva.
No Rio, desde o posto 3 até o Forte, as pessoas com camisetas da seleção brasileira caminhavam e se aglomeravam em torno de carros de som entre os cariocas indiferentes ao comício que foram à praia no dia de sol. Eles aplaudiam as apresentações militares das Forças Armadas, como a da esquadrilha da fumaça. Diluia-se a frontreira entre o evento militar do bicentenário e a reunião de Bolsonaro, a exemplo do que ocorrera antes em Brasília. Entretanto, o chamado do presidente para que o povo em geral fosse às ruas apoiá-lo foi escutado apenas por seu povo.
Em Copacabana viam-se faixas contra o comunismo e pela intervenção militar. Houve até discurso a favor do tratamento precoce contra a covid-19 e contra a vacina. Bolsonaro conseguiu mobilizar seu povo com a ajuda dos cabos eleitorais dos candidatos às eleições que o apoiam. Mas as faixas, discursos e camisetas mostravam que Bolsonaro não conseguiu atrair o restante da população.
O evento no Rio foi o último ato de um dia que consolidou o isolamento de Bolsonaro e do bolsonarismo. Ele seguiu o desenho antevisto mais cedo, em Brasília, quando o candidato à reeleição pelo PL lembrou fatos históricos, como o golpe militar de 1964 e sua própria eleição, para dizer que a “história pode se repetir”. Pôs no mesmo balaio o golpe de 1964 o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 para o deleite do PT, que sempre fez o mesmo. Queria dizer que o bem sempre venceu o mal, mas acabou apenas reafirmando o discurso de sempre, aquele que associa todos os que se opõe ao governo – dos banqueiros aos professores do Largo São Francisco – ao comunismo.
O presidente usou a TV pública para afirmar que o que estava em jogo na data cívica era “a nossa liberdade, o nosso futuro”. Estava certo. Mas o que se decidia tanto em Brasília quanto na orla de Copacabana não era propriamente o futuro da Nação, mas o de Bolsonaro e o de seus filhos. O candidato transformou, como previsto, a data do bicentenário em ato político-eleitoral. Daí também a presença dos apoiadores de sempre no palanque do desfile cívico-militar em Brasília, de d. Bertrand de Orleans e Bragança ao Luciano Hang.
No Rio, os tiros de canhão do Forte de Copacabana reforçavam a tentativa de Bolsonaro mostrar que ele e não a Nação detém as armas das três Forças. A orla perto da unidade militar se enchia de apoiadores de Bolsonaro na mesma medida em que os chefes dos demais Poderes da República se ausentavam do palanque em Brasília. Era o primeiro sinal do isolamentoi presidencial, situação que só deve aumentar a medida em que as pesquisas de intenção de voto mostram ser cada vez mais distante a possibilidade da reeleição e o apoio a um golpe.
A presença da militância bolsonarista no Rio foi até além da de outros atos promovidos pelo movimento em anos anteriores cidade. Bolsonaro tentou mobilizar o passado – trouxe o coração de d. Pedro I de Portugal para o Brasil para o bicentenário e usou o anticomunismo do século 20 – e mais uma vez apostou na divisão do País para garantir votos em outubro.
No Leme, do outro lado da orla de Copacabana, ninguém parecia ter tomado conhecimento da convocação do presidente. Longe do Forte, as quadras de vôlei e de futebol de praia estavam cheias. Havia mais pessoas com o manto rubro-negro do Flamengo à espera do jogo pela semifinal da Taça Libertadores do que com a camiseta verde-amarela da seleção. O carioca e os turistas aproveitaram o dia de sol para caminharno calçadão, andar de bicicleta e tomar sorvete sem levantar os olhos para ver a passagem da esquadra. E, assim, transformado em ato partidário, por obra do presidente da República, a comemoração dos 200 da Independência viu uma Nação dividida e em grande parte ausente das ruas para festejá-la.
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