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As relações entre o Poder Civil e o poder Militar

Delator do PCC entregou à polícia fintechs que ligam a facção ao futebol e a transações bilionárias

Gritzbach afirmou que policial civil é proprietário de empresa que processa cerca de R$ 30 bilhões em transferências entre bancos e grandes empresas e mantém contrato com torcida organizada; acusados não foram localizados

Foto do author Marcelo Godoy
Atualização:

As fintechs são um dos principais caminhos investigados pelos promotores do Grupo de Atuação Especial e Combate ao Crime Organizado (Gaeco) para combater a lavagem de dinheiro do tráfico do Primeiro Comando da Capital (PCC). Duas delas despontaram nos depoimentos do delator do PCC, o empresário Antônio Vinicius Lopes Gritzbach, executado a tiros de fuzil, em 8 de novembro, no desembarque do aeroporto de Guarulhos.

O delator do PCC Antonio Vinicius Lopes Gritzbach em relatório feito pela Polícia Civil sobre lavagem de dinheiro Foto: Reprodução / Estadão

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Para investigadores e economistas ouvidos pela coluna, a profusão de casos de fintechs envolvidas em fraudes bancárias, ocultação de patrimônio e lavagem de ativos demonstraria a necessidade de rever a regulamentação do setor. Resoluções do Conselho Monetário Nacional desde 2018 têm servido de base para o funcionamento das fintechs. Quem as fiscaliza é o Banco Central.

Entre as operações recentes que detectaram fraudes gigantescas ligadas às fintechs está a Operação Concierge, da Polícia Federal. Deflagrada em 28 de agosto, ela colheu indícios de fraudes praticadas pelo T10 Bank, que prometia aos seus clientes blindagem patrimonial contra bloqueios judiciais em casos de recuperação judicial, falência ou dívidas trabalhistas. Também fez movimentações milionárias para a empresa de ônibus UPBUs para protegê-la de dívidas tributárias.

Alvo da Operação Fim da Linha, a UPBus não era uma empresa qualquer. Investigações mostraram que a empresa era controlada por integrantes do PCC, como os traficantes conhecidos de Gritzbach. Outra fintech que teria ligações com o PCC é a 4TBank, que foi investigada na Operação Decurio, também em agosto. Só ela teria movimentado R$ 8,1 bilhões.

Agora surgem mais duas, que se juntam a cerca de uma dezena sob a mira da Polícia Civil de São Paulo, da PF e dos promotores do Gaeco. Elas estão nos anexos II e IV da delação de Gritzbach e no depoimento do empresário prestado à Corregedoria da Polícia Civil. É neste último que surge o 2 Go Bank.

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Ao todo, 200 agentes da PF foram mobilizados na Operação Concierge para cumprir mandados em cidades paulistas e mineiras Foto: Divulgação / PF

Com sede no Ibirapuera, na zona sul de São Paulo, o 2 Go Bank abriu em 2023 o chamado Banco do Torcedor, no qual fornece serviços financeiros como conta corrente, pix, cartão e seguro para o torcedores de clube de futebol. Também se apresenta como uma fonte adicional de receita para clubes, integrando serviços de compra de ingresso, e-commerce de artigos esportivos, serviços de apostas e programas de benefícios para os torcedores.

Seu presidente e sócio é um investigador de polícia que trabalha no Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic). O policial foi citado por Gritzbach no depoimento que o delator prestou na Corregedoria, no dia 31 de outubro. A coluna procurou o investigador no telefone de contato do 2 Go Bank e deixou recado, mas ele não respondeu. Sua fintech processaria cerca de R$ 30 bilhões por ano em transferências entre grandes empresas e bancos.

Foi a primeira vez que o nome do policial apareceu na investigação. No anexo IV de sua proposta de delação, Gritzbach falava apenas de um “policial civil”, sem, no entanto, nomeá-lo. O 2 Go Bank mantém acordo com a Torcida Independente, do São Paulo Futebol Clube. Também usou dois jogadores de futebol – um identificado com o Flamengo e outro com o São Paulo – com passagens pela seleção brasileira em peças publicitárias, mas nenhum deles é citado nas investigações, assim como a torcida, que informou à coluna ter apenas contratado o “serviço do banco”.

Rafael Maeda Pires, o Japa do PCC, chega ao prédio no Tatuapé em que foi encontrado morto, em abril de 2023 Foto: Reprodução / Estadão

No Anexo II da proposta de delação, Gritzbach detalhou o papel de outro homem supostamente envolvido com as fintechs usadas pela facção. Trata-se de Rafael Maeda, o Japa do PCC. Piloto de Fórmula HB20 e vendedor de carros, Maeda agenciava atletas de futebol e enviaria dinheiro ao traficante Anselmo Becheli Santa Fausta, o Cara Preta, assassinado em 27 de dezembro de 2021, no Tatuapé, na zona leste. Segundo a delação, Maeda teria participado do sequestro de Gritzbach ao lado de Cláudio Marcos de Almeida, o Django, outro importante traficante do PCC.

O delator fora sequestrado em janeiro de 2022 porque o PCC o acusava de ser o mandante da morte de Cara Preta. Como Django decidiu soltá-lo, a facção decidiu, em seguida, executar o traficante. Segundo Gritzbach, Maeda “estava no local de desova do corpo de Django”. O delator afirmou ainda que Maeda “morreu de forma suspeita”. O Japa do PCC foi encontrado com uma arma na mão dentro de seu carro na garagem de um prédio, no Tatuapé, em 4 de maio de 2023.

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Gritzbach afirmou na Corregedoria que Maeda “participava de negociações” com outra fintech e se dizia dono de um banco onde figuraria como sócio “um policial civil”. Essa outra fintech fora constituída em 2013 com o “propósito específico de realizar contratos com construtoras e esquentar dinheiro”. Se tratava de uma sociedade em conta de participação (SCP) que tinha, segundo Gritzbach, Cara Preta como um dos donos.

A execução de Gritzbach, no desembarque do aeroporto de Guarulhos, ocorrido no dia 8 de novembro Foto: Italo Lo Re /Estadao

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O delator entregou aos promotores cópia de contrato de gaveta na qual o traficante do PCC figuraria como proprietário da fintech com outros dois advogados. “Através dessa SCP, foram realizadas diversas operações, inclusive uma de R$ 180 milhões”, contou. Segundo Gritzbach, a operação envolveria ainda duas construtoras. Depois da morte de Cara Preta, a fintech teria sido vendida pelos advogados.

Gritzbach confessou que lavava dinheiro para traficantes da facção em seu acordo de delação premiada. Ele e um empresário do setor de criptoativos eram suspeitos de terem dado um desfalque em Cara Preta de R$ 100 milhões, dinheiro investido em criptomoedas. O delator afirmou ainda que o empresário lhe devia dinheiro.

Esclarecer a morte do delator é só o primeiro passo que as polícias de São Paulo e o Ministério Público devem dar a fim de demonstrar à população de que a lei e a ordem ainda existem em São Paulo. O segundo passo é mostrar que estas duas valem para todos, não apenas para os executores do crime, mas também para seus mandantes. Mas também para quem lava o dinheiro ilícito, os milionários do crime organizado, quem os protege e quem por meio deles enriquece.

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