Magistrados são muito sensíveis em relação ao cumprimento de suas ordens. Pode-se admitir todo tipo de recurso e petição, desde que não haja litigância de má-fé. Em um processo, somente as partes podem se manifestar. O advogado de um cartório civil não pode contestar a sentença de um divórcio litigioso porque seu cliente acredita ser o casamento uma união indissolúvel. Deve registrá-lo e mais nada.
O empresário Elon Musk queria discutir a liberdade de expressão no Brasil. Tem todo o direito de fazê-lo. Pode-se discordar de decisões judiciais ou mesmo de leis, mas não é dado àqueles que estão no território brasileiro decidir ou escolher quais leis cumpre e quais descumpre. Ou quem é juiz legítimo e quem é ilegítimo. Todos devem se curvar à lei e às ordens judiciais, ainda que as considere injustas.
Foi o que fez Luiz Inácio Lula da Silva ao ter sua condenação confirmada pelo Tribunal Regional Federal-4 (TRF-4). Independentemente do mérito dos processos, Lula da Silva se submeteu à ordem judicial. Não procurou a embaixada de Cuba ou da Venezuela. Entregou-se à PF e permaneceu preso por 580 dias até que o STF deu razão à defesa e considerou o então juiz Sérgio Moro suspeito para julgá-lo. É preciso que se diga que o atual presidente da República fez o que se espera de todo cidadão: o respeito às decisões judiciais.
Mesmo que Alexandre de Moraes tenha despertado críticas quase uníssonas a respeito da condução dos inquéritos eternos que mantém sob sua relatoria no Supremo, há um ponto na polêmica entre o ministro e o empresário Elon Musk que não desce pela garganta da maioria dos magistrados ouvidos pela coluna: o desrespeito acintoso às leis do País e o comportamento de Musk como ator político, tentando se tornar parte cada vez que uma medida judicial atinge um usuário de sua rede social, o X, ex-Twitter.
O primeiro ponto é que a rede X não é parte nesses processos. “Twitter não é parte. Temos vários casos em que o juiz autoriza interceptação telefônica e a operadora de telefonia acha que está errado”, afirmou a desembargadora Ivana David, da 7ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo. Ivana foi juíza-corregedoria do Departamento de Inquéritos Policiais (Dipo), do TJ-SP. Era responsável pela concessão de cautelares em todos os inquéritos da cidade de São Paulo. Sempre teve mão pesada contra o crime.
O que ela disse é que o X age como se, hipoteticamente, os bancos começassem a recusar a cumprir ordens de quebra de sigilo bancário em investigações sobre organizações criminosas sob a alegação de que o sigilo bancário é um direito constitucional. Ou como se a Vivo ou outra operadora decidisse questionar a decisão judicial de interceptação telefônica envolvendo terrorismo, pedofilia, tráfico de drogas ou qualquer outro crime alegando a defesa do sigilo de correspondência.
Quem pode contestar o afastamento do sigilo telefônico ou bancário é o advogado do investigado e não o banco ou a telefônica. Pois é isso o que Elon Musk estaria fazendo ao alegar que ia desbloquear perfis bloqueados por ordem judicial ou quando se recusou a obedecer ordem do STF para bloquear outros, de pessoas que passaram a ameaçar de morte delegados federais.
Pior. Musk, segundo a magistrada, estaria dando um grande tiro no pé ao mostrar de forma límpida que sua rede não é neutra e, portanto, não estaria protegida pelo artigo 19 do Marco Civil de Internet, cuja constitucionalidade está sendo analisada pelo mesmo Supremo.
Por enquanto, redes sociais não podem ser responsabilizadas pelo conteúdo publicado por terceiros e a exclusão de conteúdo só pode ser feita com uma ordem judicial específica, sendo que as empresas só são responsabilizadas em caso de descumprimento da decisão. Mas, a partir do momento em que o X se associa ao que foi publicado, sua neutralidade passa a ser um privilégio, o da irresponsabilidade diante da lei, um direito monárquico, e contrário ao princípio republicano da igualdade perante a lei.
Musk usa sua rede como instrumento de defesa de um lado da polarização política. Aqui e nos Estados Unidos. É assim que obteve o apoio de parlamentares do PL e do Novo, bem como de empresários que apoiam Donald Trump em sua luta contra Moraes, enquanto se mostra subserviente aos caprichos de Recep Erdogan, de Narendra Modi e de Xi Jinping.
No TJ-SP, a desembargadora Ivana explica o que é feito quando companhias telefônicas resolvem contestar uma decisão cautelar durante uma investigação criminal: “Mandamos desentranhar, pois ela não é parte”. Ou seja, manda-se excluir do processo. Ivana vai além. Para ela e para muitos de seus colegas, ao desobedecer às ordens do STF, Musk e seus representantes podem ser enquadrados. “Com toda certeza. Musk desafiando o STF só fornece mais munição e pode, em tese, ser enquadrado no crime de desobediência.”
E mais ainda. A reiteração da conduta criminosa é um dos motivos para a decretação da prisão preventiva de um acusado em nome da garantia da ordem pública. “Quanto à decretação da prisão, o ministro já provou que não vai recuar e não descartou a decretação da prisão preventiva.” Ou seja, ainda há espaço para que a crise seja escalada. Na semana passada, a Justiça francesa decretou a prisão do empresário russo fundador do Telegram, Pavel Durov, em uma investigação sobre crimes cibernéticos porque sua rede abrigaria transações ilícitas, pornografia infantil, tráfico de drogas e fraudes.
Moraes parece contar com a maioria do STF para referendar suas decisões a respeito do X. O Supremo lhe dá respaldo, bem como a procuradoria-geral da República no caso da retirada da rede do ar. Os magistrados que conhecem Moraes desde os tempos em que ele era promotor de Justiça e depois secretário da Segurança e seus colegas da Faculdade do São Francisco têm certeza de que o ministro não vai recuar. Ainda mais agora que a Starlink resolveu também desobedecer uma ordem de Moraes, não retirando do ar o X no Brasil.
É possível. A magistratura tem seus deveres. A obediência das leis é um deles. E vale para todos. Nunca é demais repetir a velha advertência de Raymond Aron: “O regime constitucional é aquele em que, a despeito de tudo, a barreira suprema é um fio de seda – o fio de seda da legalidade. Se o fio de seda da legalidade for rompido, inevitavelmente se perfilará no horizonte o fio da espada”. Sem a legalidade, resta a violência, que pode se valer da farda, das redes ou da toga.
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