Pesquisadores das Universidades Federal de São Paulo (Unifesp), Estadual de Campinas (Unicamp) e Federal de Minas (UFMG) encontraram vestígios de sangue embaixo do piso de tacos de madeira em duas salas usadas para o interrogatório de presos na sede do antigo Destacamento de Operações de Informações (DOI), do 2º Exército, em São Paulo. Também foram encontradas inscrições feitas por um prisioneiro embaixo de azulejos de um banheiro.
Esta é a primeira vez que a arqueologia forense no Brasil encontra possíveis vestígios de sangue depositados há mais de quatro décadas por meio do uso de luminol, um produto utilizado em perícias para revelar manchas em locais de crimes violentos, como ocorreu no caso Isabella Nardoni, em São Paulo. As escavações na sede do destacamento, mais conhecido pela sigla DOI-Codi, começaram no dia 2 de agosto.
O encontro dos vestígios aconteceu na quinta-feira, pouco antes da visita do procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mário Luiz Sarrubbo. O Ministério Público Estadual (MPE) entrou com uma ação na Justiça para que o governo do Estado transforme a sede do antigo órgão de repressão em um memorial. As escavações fazem parte desse projeto.
“Nós encontramos vestígios de sangue em dois lugares. Eram duas salas do primeiro andar do prédio, que foram usadas para o interrogatório de presos nos anos 1970″, afirmou a historiadora Deborah Neves, responsável pelo projeto do memorial. Uma delas fica próximo da escada. Embaixo de tacos de madeira, os arqueólogos encontraram manchas escuras que pareciam de material orgânico. Eles aplicaram o luminol e ele revelou a presença do sangue.
Os pesquisadores trabalham com a hipóteses de que o sangue de vítimas de tortura tenha descido pelas frestas do piso, impregnando a área embaixo dos tacos. O mesmo teria acontecido em outra sala do prédio examinada pelos arqueólogos. “O contrapiso ajudou a preservar o vestígio”, disse Deborah. “Temos relatos de que se tratava de um lugar onde presos eram torturados. Aqui, por exemplo, o preso Joaquim Alencar Seixas foi colocado na chamada cadeira do dragão (uma cadeira com chapas de ferro onde os detentos eram amarrados e recebiam choques elétricos)”, afirmou a historiadora.
Calendário
No segundo andar, os pesquisadores fizeram outra descoberta. Embaixo do azulejo do banheiro havia inscrições. Era um calendário com datas que associavam os dias da semana com datas que iam de 22 de novembro a 3 de dezembro.
Pela sequência, sabe-se que a inscrição se refere ao calendário de 1970 ou de 1981. “A marcação do tempo é um ato de resistência, pois os carcereiros buscam negar a noção de tempo e de espaço ao prisioneiro. Fazer um calendário ajuda a manter a sanidade, enquanto se está detido”, afirmou Aline Carvalho, coordenadora da arqueologia pública da Unicamp.
Os arqueólogos e pesquisadores acreditam que outros vestígios sobre a história do prédio poderão surgir em novas escavações. O trabalho atual deve terminar nesta segunda-feira, dia 14. O possível material orgânico será levado ao Laboratório de Estudos Arqueológicos (LEA), da Unifesp.
Cláudia Plens, coordenadora do LEA, conta que o luminol reage com qualquer substância que contenha ferro em sua forma iônica ou cobre. “Ele reage com o sangue porque a hemoglobina tem ferro. Mas não reage apenas com materiais biológicos. Por essa razão, seria possível dar falso positivo e, portanto, serão necessárias análises laboratoriais para a avaliação dos vestígios.” Mas, pelo fato de os vestígios terem sido encontrados em salas usadas para o interrogatório de presos, a hipótese de se tratar de sangue é alta.
Já o material inorgânico será examinado na Unicamp. Para lá devem ser transportados frascos de tinta, pedaços de papel – entre eles uma parte de uma folha do Diário Oficial publicado em 1975 – e algumas cerâmicas indígenas, o que indicaria uma ocupação ainda mais antiga do terreno. “Esse material deve retornar para cá quando o memorial for criado”, afirmou Aline.
As escavações foram feitas em cinco lugares do complexo de prédios onde funcionou o antigo DOI, entre as Ruas Tomás Carvalhal e Tutóia, no Paraíso, na zona sul de São Paulo, ao lado do 36.º Distrito Policial. Atualmente, na frente da área funciona a delegacia enquanto os prédios dos fundos estão vazios.
Desde 2014, o grupo de pesquisadores liderado por Deborah defende a criação de um memorial na sede do destacamento, a exemplo do existente na sede do antigo Dops, o Departamento de Ordem Política e Social, órgão da Polícia Civil, que comandou a repressão política nos primeiros anos do regime instalado com o golpe de 1964. O DOI foi criado em 1969, quando o Dops passou a ter um papel secundário no sistema repressivo.
Subordinado ao antigo 2º Exército, o órgão reunia policiais civis, policiais militares e policiais federais e militares das Forças Armadas. Seus comandantes eram todos do Exército, sendo o mais famoso deles o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, morto em 2015. Foi em uma das celas do DOI que foi morto sob tortura o jornalista Vladimir Herzog, em 1975. O destacamento funcionou no complexo até 1982. E, depois, em outros endereços, até 1991, quando a parceria entre policiais e militares do Exército foi desfeita.
O processo na Justiça para a criação do memorial foi iniciado em 2021 por iniciativa do Ministério Público Estadual, que entrou com uma ação na 14.ª Vara da Fazenda Pública. A promotoria propôs ao Estado um acordo para a criação do memorial.
O pedido foi encaminhado ao governo em 2022, na gestão do governador Rodrigo Garcia, que cogitou a entrega do complexo, com custo de R$ 15 milhões, mas, depois, decidiu ceder só os prédios vazios, onde funcionavam a direção do DOI e parte das salas das Seções de Investigação e de Análise e Interrogatório. O caso está agora sob análise da Secretaria da Cultura, onde aguarda parecer da procuradoria. Ele ameaça se tornar um constrangimento para setores do governo de Tarcísio de Freitas, contrários à criação do memorial.
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