Maquiavel dizia que sem piedade se podia empalmar o poder, mas não a glória. Há várias formas de se empalmar o poder, além da união entre a Fortuna e a Virtù para eleger o príncipe ou o prefeito. Os tempos mudaram e Guilherme Boulos, o candidato do PSOL, pareceu querer se adaptar e, assim, não ser dobrado pelos ventos novos. Derrotado, ele disse ontem: Perdemos, mas recuperamos a dignidade da esquerda”. Será?
Por essa e outras, o eleitor da capital paulista viu exemplos formidáveis nesta campanha. Além do ex-coach Pablo Marçal, cujas razões de sucesso – e do fracasso final – já foram debatidas à exaustão, há outra candidatura que merece uma sessão de terapia: a do deputado federal Boulos.
O psolista foi além da esquerda que troca a defesa dos direitos trabalhistas e da distribuição da riqueza pela mudança de pronomes: em sua luta para ganhar uns votos a mais no segundo turno, o psolista resolveu aceitar o desafio de Marçal para uma sabatina em suas redes sociais.
Em 14 de agosto, no debate promovido pelo Estadão, pela Fundação Armando Álvares Penteado e pelo Terra, Marçal insinuou que Boulos consumia cocaína. Na plateia, assessores do candidato do PRTB fungavam fortemente quando o deputado psolista começava a falar. Até que o ex-coach resolveu exorcizar Boulos, exibindo-lhe uma carteira de trabalho, como se fosse um crucifixo.
Boulos reagiu de forma intempestiva: tentou retirar de Marçal a carteira. Virou meme. Enquanto isso, o ex-coach não perdia a oportunidade de dizer que ia revelar uma bomba contra o “comunista”. Seria no último dia de campanha. O deputado do PSOL chegou a relatar o choro da filha diante dos ataques do adversário.
Marçal parecia não ter limites. Nem se conter. E angariava votos na mesma medida em que ameaçava os favoritos Nunes e Boulos. Seus adversários alertavam para o passado do candidato e para a proximidade de aliados do ex-coach com o Primeiro Comando da Capital (PCC) até que ele levou em um debate um golpe com um banquinho desferido pelo tucano José Luiz Datena.
Visto como um pária na campanha eleitoral, Marçal queria mesmo se vender assim, como alguém contra todos os que ele chamava de “consórcio”. Teve 28% dos votos e ficou um ponto porcentual abaixo de Boulos e 1,5 ponto abaixo de Nunes, os candidatos que passaram para o segundo turno. E o que fez o psolista para tentar vencer a aritmética desfavorável que indicava Nunes como herdeiro dos votos de Marçal?
Tentou mimetizar a estética, as ideias e até o caráter da candidatura de Marçal. Foi assim que no dia 23 de outubro, o deputado publicou um vídeo no X, o antigo Twitter, no qual eleitores que diziam ter votado em Marçal decidiam escolher Boulos no 2º turno. Terminava com um deles retirando o boné com a letra M, símbolo da campanha do ex-coach, trocando-o por um da mesma cor e modelo, mas com a letra B.
Parecia uma boa ideia. Pode-se dizer que a mensagem se dirigia aos eleitores. Mas a identificação de Boulos com os símbolos de Marçal era algo que não se imaginava possível no dia 5 de outubro. Naquele dia, o deputado pedira a prisão e a cassação de Marçal, depois de o ex-coach divulgar à noite anterior o falso laudo que imputava ao adversário “ideias homicidas” em um estado de “surto psicótico” pelo consumo de cocaína.
Logo no mesmo dia 23, Boulos anunciou que aceitava o convite de Marçal para a sabatina que o ex-coach propunha com os candidatos. Era a aposta final do deputado para conquistar um eleitor improvável e baixar a sua rejeição nas pesquisas. A manobra rendeu a Boulos 42 publicações na rede X – 25 delas no dia da sabatina, 25 de outubro – e outras 20 no Instagram.
Em uma delas, Boulos anunciava: “Jesus é inspiração para todos nós. Isso eu aprendi no movimento social.” Contou com 12,6 mil visualizações. Um apoiador respondeu-lhe: “Acho que Jesus largou a cidade de São Paulo faz tempo, olha o absurdo que temos que assistir: o opressor e o oprimido do 1º turno”.
Se conquistou algum voto, é difícil saber. No domingo à noite, as urnas mostravam que o psolista tivera 40,65% dos votos, um pouco mais do que os 40,21% que obtivera quatro anos antes. Para muitos de seus colegas de partido, ao aceitar o convite de Marçal, Boulos mostrava a degradação de quem busca conciliar com o que não há conciliação. Ex-PCB e ex-PT e atualmente no PSOL, o ex-deputado federal Milton Temer escreveu um desabafo em uma rede social:
“Marçal faz Boulos de figurante em lançamento de campanha para presidente em 2026. Posou de cidadão civilizado, investindo sobre um senso comum imbecilizado que o apoia integralmente pelo caráter privatista, individualista, preconceituoso, de suas propostas, mas não se sentia bem no cenário de cadeiradas.”
Temer seguiu, dizendo o óbvio: quem mais se beneficiara do ato de Boulos era Marçal, que “lançou a campanha, já afirmando que se defrontará com Boulos, a quem anuncia como sucessor de Lula”. Para ele, Boulos “apareceu com as obviedades que qualquer candidato de centrão repetiria em campanha. Fazendo o possível para ser visto, no máximo, como um ‘melhorista’ da ordem que não pretende reformar estruturalmente.”
Temer chegou então ao ponto central para muitos que acompanharam o desenrolar da truculenta campanha em São Paulo. Disse que Boulos “conviveu com quem ofendeu ele e a família, e isso mostra mais um princípio importante ao qual renuncia – a capacidade de fazer qualquer coisa para conseguir alguns votinhos. Boulos não apresentou novidade ou impacto. Ajudou, sim, Marçal a de novo pontificar, e com cara nova: como alguém capaz de conviver com o adversário. Já pensando na presidencial de 2026.”
Na Justiça Eleitoral, o dano causado pelo laudo falso ao candidato do PSOL será central para decidir pela inelegibilidade ou não de Marçal na futura ação que ele deve responder. Ao comparecer ao lado de sua nêmesis em troca de votos, Boulos expôs a degradação da política e o valor de seus princípios.
O deputado – como disse Temer – optou pelo salto no abismo sem saber se o paraquedas abriria. Não abriu. Ao aceitar o convite de quem fez sua filha chorar no primeiro turno, Boulos mostrou até onde o oportunismo parlamentar se confunde com o cretinismo nos partidos políticos. Entre a honra e a cadeira de prefeito, ele escolheu a cadeira. E acabou sem ambas. Não teve virtù, nem lhe abraçou a fortuna.
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