Leônidas Pires Gonçalves foi o homem que comandou a volta dos militares para os quartéis. Teve de lidar com os impulsos do Centro de Informações do Exército (CIE) que pretendia participar ativamente da guerra cultural que ele enxergava em torno da memória dos presidentes militares. Foi durante seu comando que se produziu o Projeto Orvil, um livro por meio do qual o CIE pretendia contar sua versão sobre a luta contra o comunismo e os comunistas. Pronto o documento de quase 2 mil páginas, ele foi engavetado por ordem de Leônidas. Não era o caso de reviver feridas.
O então comandante queria o Exército distante da política partidária em nome de sua profissionalização. Acreditava, como o general Góes Monteiro nos anos 1940, que a tropa sempre sairia perdendo quando se fazia a política dos partidos nos quartéis em vez de se levar aos partidos a política do Exército. A figura do primeiro comandante da Nova República está sendo recuperada nas casernas para explicar aos homens e mulheres o papel do atual chefe, o general Tomás Miguel Ribeiro Paiva. Generais ouvidos pela coluna consideram que o esforço de Tomás de afastar a Força Terrestre da contaminação ideológica dos anos da Presidência de Jair Bolsonaro é comparável ao de Leônidas.
O desafio foi abordado no artigo A espada de dâmocles e as lideranças militares pelo general Otávio Rêgo Barros, o qual questionou como seria a transição para o governo civil se Leônidas tivesse de lidar com o “desassossego das redes sociais, com memes grotescos, vilipêndio de adversários e notícias mentirosas”. Rêgo Barros lembra que na caserna a liderança “se constrói em associação com a hierarquia, as decisões subsistem na solidão do comando e a comunicação é sempre oficial”. O problema é que o comandante e seus subordinados não estão mais isolados atrás dos muros dos quartéis.
O telefone celular, o computador e outros aparelhos levam as redes sociais para dentro das unidades. E nelas estão manifestações que o Exército não estava acostumado a testemunhar. Basta abrir qualquer post na conta do Twitter da Força Terrestre. Diante da enxurrada de críticas, o comando fechou sua conta @exercitooficial para comentários em 2 de fevereiro. Na semana passada, o general Alcides Valeriano de Faria Junior decidiu reabri-la ao publicar uma entrevista com a major Gabriela Rocha Bernardes, que está na força de paz das Nações Unidas, no Sudão.
A reação do bolsonarismo radical foi violenta. Entre os primeiros 215 comentários no post, 188 eram ofensivos ao Exército e aos seus comandantes. O xingamento mais repetido foi “melancia” (40 menções), epíteto com o qual se busca dizer que os militares são “vermelhos” por dentro. Logo atrás estava a acusação de “trairas” ou de “traição”, repetida 35 vezes. Uma dúzia de vezes os comentadores mandaram os militares “pintar sarjeta” ou “capinar”. Também mandavam a Força “fazer o L” e os acusavam de prender crianças e idosos e abandonar os “patriotas”.
Ou seja, a extrema direita continua a sonhar com um golpe de Estado e chama de “traição” o cumprimento da Constituição e a manutenção do Estado Democrático de Direito. Ela acredita que o Brasil está em vias de se transformar em um a ditadura porque os chefes militares prestam continência ao atual presidente: Lula. Até mesmo a decisão de retirar a política partidária de dentro dos quartéis após a contaminação ideológica registrada no governo Bolsonaro se transformou em razão para acusar o general Tomás de ser um instrumento do Foro de São Paulo.
De fato, o Exército não estava acostumado com isso. As publicações oficiais eram sempre elogiadas nas redes sociais por seu público, a maioria formada por conservadores e por eleitores de Jair Bolsonaro. Os raros comentários críticos vinham de usuários identificados com a oposição ao governo do capitão. Agora, as principais bolhas da internet – a da esquerda e a da direita – se uniram para criticar a Força.
Uns apontam para a conivência de generais com o governo anterior, com as ameaças à democracia e os acampamentos em frente aos quartéis, cuja escalada terminou no ataque à sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro. Como não se viu no País pronunciamento de generais fechando Congresso e Supremo, os outros acusam os comandantes de traição. O general Tomás terá de conviver com esse ambiente enquanto procura fazer do Exército força apolítica, apartidária, imparcial e coesa. Ao reabrir suas redes, a Força Terrestre mostra ter aprendido uma lição: esse terreno dominado pelo imediatismo foi minado pelos radicais.
Há outras lições apreendidas. Uma relembra as consequências da invasão ideológica dos quartéis. E como isso atrapalha a profissionalização e a prontidão da Força. O coronel Paulo Roberto da Silva Gomes Filho chamou a atenção para os dados do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Sipri, na sigla em inglês). Segundo relatório divulgado em abril, os investimentos globais em defesa aumentaram 3,7% em 2022, em comparação com o ano anterior. O Brasil gastou US$ 20,2 bilhões, o que corresponde a 1,1% de seu PIB. “Na contramão do mundo, o País investiu 7,9% a menos em 2022 que em 2021. Os gastos brasileiros de 2022 foram 14% inferiores aos gastos de 2013(!)”.
Ou seja. Enquanto a política invadia os quartéis, o orçamento minguava, pois pareceu ao governo mais importante cuidar do destino de seus partidários do que da Defesa Nacional. Não só. O general Carlos Alberto Santos Cruz apontava para outro efeito da lógica binária, de extremos, que acompanhava Bolsonaro e criava seus próprios fatos e suas próprias guerras. Com o passar do tempo, esse estado de coisas provocava cansaço e indiferença. O absurdo se misturava à paisagem e aos afazeres diários.
O poeta Guillaume Apollinaire, engajado na artilharia francesa de 1914, registrou a transformação do mundo em conflito nos versos de um de seus Calligrammes: “Car on a poussé très loin durant cette guerre l’art de l’invisibilité”. Eis que se levou longe demais a arte da invisibilidade. Pouco a pouco, o extremismo bolsonarista parecia normal. A sensibilidade dos analistas de informações militares e civis ficou embotada e já não foi mais possível distinguir as fronteiras da legalidade e onde tudo aquilo ia parar.
E assim oficiais dos órgãos de inteligência civis e militares conviveram – outros foram coniventes – com a escalada de violência que incluiu ataques a policiais e até um atentado frustrado com um caminhão-tanque no aeroporto de Brasília sem perceber – ou desejando – que nada daquilo poderia acabar bem. A lição operacional de detectar os riscos e tomar as medidas consequentes deve ter sido aprendida. O Plano Escudo de proteção aos centros do poder estatal deve ser alterado para evitar que os fatos do dia 8 se repitam.
O novo ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Marco Antonio Amaro dos Santos, tem experiência na área de inteligência, o que faltava ao seu antecessor, Marco Edson Gonçalves Dias. Filho de um ferroviário, Amaro teve de emprestar livros para estudar para o exame da Escola Preparatória de Cadetes do Exército, onde entrou em 1974. Na Academia Militar de Agulhas Negras (AMAN), foi contemporâneo de Bolsonaro – o general foi bicho do presidente – e serviu como chefe da Casa Militar no governo Dilma Rousseff.
Amaro e Tomás terão de consolidar não só a nova institucionalidade envolvendo civis e militares. Mas também enfrentar o desafio das redes sociais e da desinformação. Em 28 de abril, a general Laura Richardson, chefe do Comando Sul dos EUA (SouthCom) , alertou para o aumento da desinformação na América Latina. Citou especificamente meios de comunicação russos que trabalham na região. “Nós não estamos competindo com a desinformação. Nós estamos em conflito.” Afirmou ser preciso reagir, iluminar e expor o problema. Em um governo que teima em se equilibrar entre o agressor russo e o país agredido – a Ucrânia –, o alerta da general demonstra o tamanho dos desafios para os brasileiros nesse teatro de operações.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.