Caro leitor,
bolsonaristas se aglomeram diante de quartéis pedindo um golpe militar, brigadeiros e almirantes da reserva fazem um manifesto pedindo aos comandantes militares que intervenham contra o resultado das urnas e oficiais da ativa ofendem em redes sociais o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Diante desse ambiente conturbado, petistas cogitam usar o Ministério da Defesa para acomodar companheiros na Esplanada, fazendo da Pasta a cadeira que se procura para abrigar Aloizio Mercadante ou Jaques Wagner.
Caso esse seja o critério da escolha, o PT terá encontrado uma solução para um problema do partido, mas criará outro para Lula. A transição na Defesa se tornou uma novela: trata-se de uma das duas únicas áreas que não teve nome anunciado até agora. Enquanto isso, o comandante da Força Aérea, brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior, já marcou até a cerimônia de passagem de comando de sua Força para o dia 23 de dezembro, sem que nem mesmo os nomes do futuro governo sejam conhecidos. Lula se mostra cada vez mais refém dos acontecimentos. E eles se multiplicam sem que se vislumbre disposição para comandar. Ou estabelecer missões.
Há 6 mil militares ocupando cargos civis na Esplanada e milhares de familiares de militares e bolsonaristas acampados na frente de quartéis de todo o País. São radicais minoritários? É possível. Mas no fim de semana 221 militares da reserva – entre os quais 46 oficiais generais (33 da FAB, dez da Marinha e 3 do Exército) –, todos do grupo autodenominado Guardiões da Nação, assinaram uma petição aos comandantes das três Forças na qual pedem que intervenham contra as decisões do Tribunal Superior Eleitoral, que afastou a contestação sem provas feita pelo PL contra a vitória de Lula. O primeiro nome da lista é o do general e deputado federal bolsonarista Eliéser Girão (PL-RN).
É nesse contexto que líderes petistas mantêm a indefinição na Defesa. E isso em meio à mais difícil das transições da história da Constituição de 1988. Oficiais generais das três Forças aguardavam para a Pasta um nome – ainda que civil – que tivesse intimidade com a área. A Defesa é crítica para a consolidação da democracia no País, onde até mesmo o princípio do controle civil objetivo traçado por Samuel Huntington é realidade distante. Trata-se de reconstruir a institucionalidade do cargo, transformado em braço da ação político-partidária do presidente Jair Bolsonaro.
É com esse argumento que outros petistas defendem a nomeação de Nelson Jobim, ex-ministro da Defesa e ex-ministro do STF para o cargo. Acreditam que ele é capaz de produzir consenso entre os militares. Também teria autoridade para pôr ordem na casa e enfrentar os indisciplinados das redes sociais. Jobim – eles afirmam – saberia explicar que o direito de se manifestar não cria o direito de delinquir. Não existe liberdade para cometer crimes, como faz quem incita as Forças Armadas a dar um golpe de Estado, sob o argumento falso de fraude eleitoral ou de que a Justiça não seria mais capaz de dirimir os conflitos no País.
Diante do silêncio de Lula sobre a transição, os radicais aproveitam. Os Guardiões da Nação acreditam ter legitimidade para falar por toda o povo e chamam de “pedido de cidadãos” a denúncia feita pelo PL, partido de Bolsonaro, e rejeitada pelo TSE. É curioso como tentam transformar Valdemar Costa Neto em representante da cidadania. E buscam confundir o País com a bolha bolsonarista das redes sociais. Mas o que impressiona mesmo é a audácia de defender abertamente um ataque das Forças Armadas contra os Poderes Constituídos, incitando os comandantes a dar um golpe de Estado.
Eis o que escrevem: “Em face deste quadro, é natural e justificável que o Povo Brasileiro esteja se sentindo indefeso, intimidado, de mãos atadas e busque nas FFAA, os ‘reais guardiões’ de nossa Constituição, o amparo para suas preocupações e solução para suas angústias, como sua última instância, já que não lhe parece evidente o recurso aos instrumentos de tutela jurisdicional, uma vez que a própria autoridade que deveria prestar essa mesma tutela nega-se a atender esses anseios, inclusive utilizando-se da censura.” Frustrados pela derrota, dizem representar a vontade do povo. Mas esta foi expressa nas urnas e não nas cabalas do Planalto.
O manifesto prossegue: “Nosso sentimento, continuado o atual quadro político e institucional, é que nosso Pátria corre um risco elevado de entrar rapidamente em uma convulsão social, com graves reflexos à sua Soberania e na liberdade de seu Povo”. No fim, pedem os comandantes: “Retornar ao estado de direito e à observância de preceitos constitucionais democráticos fundamentais, como a liberdade de expressão, de ideias e de opiniões; e a garantia de que a vontade do povo, democrática e soberana, seja realizada através de trâmite de trâmite, com processos transparentes, que possam ser auditados e rastreados em todas as etapas, sejam elas de que tipos foram.”
Qualquer pessoa sabe o que significa procurar um quartel para entregar esse tipo de documento. Tal petição, se encaminhada aos tribunais, já causaria estranheza. Enviada aos comandantes expõe o desejo de seus autores. É um ato até desrespeitoso incomodar com esse tipo de pedido os militares profissionais que cumprem seus deveres e obedecem às leis e à Constituição. Mas não se trata de obra de inimputáveis. Não se rasga nota de R$ 100 nos acampamentos em frente aos quartéis, nem se toma ônibus errado. Deve, portanto, o Ministério Público Federal se debruçar sobre o manifesto para examinar a sua legalidade.
Manifestantes bolsonaristas colecionam crimes em bloqueios de estradas, danificam patrimônio, atentam contra a segurança dos transportes e contra a vida de policiais, agridem jornalistas e incendeiam veículos em atos violentos que buscam subverter a ordem no País. O remédio para a sedição e a subversão é a cadeia. E é por ter medo do braço da lei que o deputado Vitor Hugo (PL-GO) apresentou projeto para anistiar os delinquentes. Quando um crime fica sem punição, não é só a lei que é desacreditada; a societas sceleris sente-se autorizada a continuar com as suas ações.
Buscar a conciliação e a paz não significa promover a impunidade ou abandonar o exercício da autoridade. O silêncio de Lula da Silva mostra a incompreensão do desafio de construir uma coalizão de governo para uma nova concertacíon que não seja mera desculpa para a divisão de cargos. O tempo para a transição na Defesa está acabando. Quem for nomeado, terá poucos dias para apresentar o diagnóstico, o exame dos nomes e das políticas. É preciso tratar a Defesa com a dignidade e a importância que ela deve ter em um País com as pretensões do Brasil.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.