O ministro da Defesa da Venezuela, Vladimir Padrino López, foi à base naval Augustin Armario, em Puerto Cabello, para exibir ao mundo os mísseis iranianos SM-90 com os quais seu país pretende equipar as lanchas rápidas de defesa iranianas zolfaghars (Peykaap 3). Seu alcance é de 90 quilômetros. O armamento é parte do material deslocado em fevereiro. Desde então, as movimentações nas regiões da Ilha Anacoco e de Punta Barima, próximas da fronteira com a Guiana, não pararam.
Fotos recentes de satélites, publicadas pelo Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS), com sede em Washington, mostram que as obras na pista de pouso da ilha e na base naval continuaram em março, abril e maio. No dia 26 de março, as imagens localizaram uma área próxima à pista de terra om cerca de 75 tendas, que poderiam abrigar um batalhão.
A Ilha Anacoco fica no Rio Cuyuni, na fronteira com a Guiana. Ali o 6.º Corpo de Engenharia do Exército está construindo uma ponte. Um vídeo sobre a ponte termina com militares gritando: “O Essequibo é nosso”. As provocações feitas pelo regime de Nicolás Maduro não pararam aí. Sobrevoo de aviões Sukhoi SU-30 na área disputada e o transporte de blindados Scorpion-90 e EE-11 Urutu para a fronteira com o país vizinho fazem parte das exibições militares do País, que se prepara para a eleição presidencial em 28 de julho.
Anacoco, no centro da fronteira entre Guiana e a Venezuela, e Punta Barima estão longe de Roraima, onde o Exército brasileiro concentrou equipamentos avaliados em R$ 228 milhões, ao mesmo tempo em que gastou outros R$ 217 milhões com a logística da operação. A Força Terrestre já enviou a Roraima 32 blindados leves Guaicuru, oito blindados Guarani e seis blindados Cascavel, 22 viaturas não blindadas, além de dezenas de mísseis RBS 70 antiaéreos e Mísseis Superfície-Superfície 1.2 AntiCarro (MSS 1.2 AC).
Trata-se de um movimento apreciado em Washington. Na quinta-feira, dia 16, a general Laura Richardson, do Comando Sul, foi indagada em uma conferência no Wilson Center, sobre a escalada das provocações militares feitas por Maduro, talvez, para construir uma desculpa a fim de suspender as eleições. À pergunta sobre se ela via como possível um conflito armado, a general respondeu esperar, como líder militar, que a crise em Essequibo seja resolvida “diplomaticamente e que as eleições que estão marcadas para 28 de julho realmente ocorram”. E completou: “eleições livres e justas”.
Para ela, o barulho que vem da Venezuela em direção à Guiana é desnecessário. “Aprecio muito o papel do Brasil nisso também, porque eles têm sido um parceiro muito importante na vizinhança”, afirmou. A prioridade é a solução diplomática do conflito. Ela lembrou a crise humanitária envolvendo a Venezuela, com seus 7,5 milhões de refugiados, muitos dos quais recebidos pela Operação Acolhida, em Roraima. “Os abrigos para imigrantes que visitei estão cheios de gente, e conforme vou conversando com diferentes famílias e pessoas, 95% delas são da Venezuela”, contou a general.
Mais do que a Venezuela, o que preocupa a general é a presença de atores extrarregionais na América Latina, particularmente a ação da República Popular da China, apontada como a maior ameaça às democracias no hemisfério. Mas não só. Ela também se preocupa com as vendas de armas feitas pela Rússia e pelo Irã na região, como os mísseis e as lanchas enviadas pelos persas à Venezuela de Maduro e a aliança de Putin com a Nicarágua de Ortega.
Para enfrentar esse desafio, Richardson repetiu que não basta o hard power, a presença militar dos EUA na região, mesmo que sob a forma de interoperabilidade, a diplomacia militar que enxerga na Colômbia e no Brasil parceiros estratégicos na região por meio de exercícios como o CORE. A general defende a necessidade de engajar em sua luta mais do que os meios do U.S. Southern Command (SOUTHCOM), é preciso envolver o soft power americano na região.
Citou então as chuvas no Rio Grande do Sul como exemplo. “Eu tenho três funcionários da USAID (a agência americana de desenvolvimento internacional ligado ao Departamento de Estado) que trabalham no Comando Sul dos Estados Unidos. E a parceria que temos é muito, muito importante. E então temos que trabalhar juntos para nos unirmos sobre como podemos ajudar o Brasil nisso.”
Em seguida, a general revelou como o governo americano mobilizou o Departamento de Comércio para estabelecer parcerias na América Central e as negociações para o que chamou pela primeira vez de Plano Marshall para a região em função dos efeitos catastróficos da covid-19 na economia dos países, uma situação que estava sendo aproveitada pela China a fim de ampliar sua presença – 22 dos 31 países da região aderiram à Nova Rota da Seda, o plano de infraestrutura global.
O Plano Marshall original serviu no pós-guerra para deter a influência soviética na Europa ocidental, garantindo recursos americanos para a reconstrução da região. A general fez uma segunda menção à estratégia americana na América Latina, detalhando contatos e conversas mantidas com integrantes do governo Biden. “E é por isso que trabalho tanto em todas as agências, porque temos muito a oferecer. E então é realmente apontar na direção certa e no lugar certo e criar essas parcerias. Tenho uma reunião esta tarde com a secretária (Janet) Yellen, do Departamento do Tesouro.”
Ou seja, Richardson anunciou que ia sair do Wilson Center para uma reunião com Yellen para tratar da resposta americana à Nova Rota da Seda na América Latina. Dois dias antes, a secretária anunciara o aumento de tarifa para produtos chineses importados, incluindo aço e carros elétricos. A general precisou: “Conversei com o secretário (de Estado, Antony) Blinken há uma semana e eu posso dizer que temos, talvez, uma estratégia, um Plano Marshall para a região. Temos a Parceria das Américas para a Prosperidade Econômica (APEP, lançada por Biden em 2023). Ela recebeu 11 líderes latino-americanos na Casa Branca durante uma semana em novembro de 2023″. O Brasil não foi convidado.
A general lembrou que a APEP deve em “alguns meses” pôr “bilhões de dólares em projetos de infraestrutura crítica através do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Corporação Financeira para o Desenvolvimento Internacional (DFC)”. A última dessas iniciativas nesse sentido foi criada em abril pelo BID e pela DFC, que lançaram uma nova estrutura de cofinanciamento para apoiar projetos de desenvolvimento de alto impacto na América Latina e no Caribe.
“Eu acho que isso é um bom começo. E então como expandimos isso? É essa estratégia que procuramos? E assim, novamente, trata-se apenas de trazer essa atenção de consolidação das coisas para beneficiar os países”, concluiu a oficial. Do jeito que ela aprecia o protagonismo na região, a general pode ver o novo plano americano ganhar seu nome: Plano Richardson.
A general não faz parte do primeiro escalão do governo americano, mas é tratada na região como se fosse. É recebida por presidentes como Javier Milei, da Argentina, e Gustavo Petro, da Colômbia – o mesmo não ocorre no Brasil. Quando expõe suas conversas e ideias, não o faz à toa. Recentemente, sua passagem pela Argentina trouxe resultados surpreendentes, não só pela compra dos caças F-16 feita por Milei, mas também pelo anúncio feito por Milei da construção de uma base naval conjunta em Ushuaia, no sul do País.
O mundo pelo que convencionou chamar de “competição estratégica” entre potências como EUA, China e Rússia. Analistas enxergam no novo cenário geopolítico oportunidades para países como o Brasil. Se essa competição inclui dinheiro para o desenvolvimento, o País pode aproveitá-lo para projetos, como a iniciativa Rotas para a Integração, que prevê recursos do BNDES, do Banco de Desenvolvimento da América Latina e do Caribe (CAF) e do BID para investimentos para integração com países vizinhos da América do Sul, que poderão mobilizar até US$ 10 bilhões.
Se a democracia está em risco na região, como assevera a general, os investimentos e o desenvolvimento seriam uma das formas para defendê-la. Sua cruzada é tentar convencer que seu comando, que nunca esteve entre as prioridades da política externa americana, deve mudar de status para fazer frente à ameaça chinesa e suas “intenções malignas”. Eis a mensagem que ela procura enviar à região ao mesmo tempo em que busca convencer o Congresso e o governo de que as coisas mudaram.
Para tanto, listou as riquezas da região. “Você olha para o petróleo (da região); a Amazônia 31% da água doce do mundo, 60% do lítio, ouro, cobre, soja do mundo. Mais de 50% da soja do mundo é cultivada nesta região. Mais de 30% do açúcar e do milho. Penso que, sinceramente, esta região já está alimentando e abastecendo o mundo. Eles (os países da região) simplesmente não estão se beneficiando disso.”
E concluiu, reafirmando a política de boa vizinhança: “Como podemos ajudar os países com economias em dificuldades? Temos muitas empresas nos EUA. Também temos muito investimento estrangeiro direto dos EUA nesses países. Mas por que os líderes não percebem isso? Por que não estão se beneficiando disso?”, questionou. Investimentos e mísseis são as armas dessa guerra.
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