A militarização da Segurança Pública e o populismo penal são dois fenômenos que se sobressaíram nas últimas semanas como resposta de governos estaduais e do Executivo federal para o combate à criminalidade. Um vê a solução para o respeito à lei em operações letais, como as do Guarujá, quando, após a morte de um policial militar nas mãos de um facínora, busca-se “limpar a área”, como se a ação pontual e forte, em meio a denúncias de abusos, fosse impedir que uma semana depois outros traficantes de drogas voltassem a ocupar os mesmos espaços, impondo a sua tirania às comunidades carentes.
Não seria preciso citar lições históricas, como “Minha é a vingança; Eu recompensarei” (Paulo, Romanos 12: 19-20). A outra estratégia para o impor a obediência à lei acredita que a saída é determinar penas à beira da inconstitucionalidade para açoitar melhor quem se opõe ao governo e às autoridades, transformando a falta de civilidade em crime tão grave quanto o atentado à vida. Ou ainda ampliar em cem quilômetros a área de atuação das Forças Armadas nas fronteiras, como forma de combater a criminalidade transnacional.
Pois foram essas as apostas feitas pelo governador Tarcísio de Freitas e pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva diante dos maiores desafios de law enforcement, de como fazer a lei ser cumprida em São Paulo e no País. A escolha de Tarcísio por militarizar o combate ao crime, dando continuidade ao que João Doria fizera ao criar mais de uma dezena de Batalhões de Ações Especiais (BAEPs), ficou evidente com a nomeação de um capitão da PM, o deputado federal Guilherme Derrite (PL), para dirigir a Secretaria da Segurança?
Ao assumir o cargo, Derrite chegou mesmo a renegar velhas frases que o associavam à resolução violenta de ocorrências. Disse ter errado ao afirmar ser vergonhoso para um policial “não matar nem 3 pessoas em 5 anos”. O homem que trabalhara na Rota parecia ceder passo ao oficial que fez depois carreira no Corpo de Bombeiros. Até que o policial Patrick Reis, do Batalhão Tobias de Aguiar, foi assassinado no Guarujá por um traficante. O que se viu em seguida foi uma operação policial que produziu em seis dias 16 mortes, mais do que todos os casos de homicídios registrados em Santos e no Guarujá durante o primeiro semestre (14).
Ao mesmo tempo que os números demonstravam a letalidade da ação, o Estado não dizia se havia entregado ao Ministério Público as imagens das câmeras corporais dos policiais envolvidos. Na quinta-feira, dia 3, esta coluna indagou ao Palácio dos Bandeirantes se houve uso do equipamento e registro de imagens em sete dos 16 casos de mortes. Deles participaram 25 PMs da Rota. O silêncio a essa pergunta foi a resposta até agora recebida pela coluna.
Sabe-se pelo Ministério Público que parte das imagens já foi entregue pela PM. Mas quais? O do garçon que sonhava ser tiktoker? Seria o caso de lembrar o que disse um coronel que trabalhou no Comando de Policiamento de Choque: o bumbo bate no pé direito e a preocupação é com o alinhamento. Ou seja: a tropa é enquadrada, todos marcham na mesma cadência, em ordem. Não há espaço para indisciplina ou para ações coletivas à revelia do comando. Se o equipamento existe e deve ser usado, as imagens têm de aparecer. Se não, será preciso apurar a razão.
Diante do atual estado de coisas, o coronel José Vicente da Silva Filho chama a atenção para o artigo Segurança Pública baseada em dados, publicado pelos pesquisadores Joana Monteiro e Rodrigo Serrano Berthet, no Estadão. Para o coronel da PM paulista, o texto é “especialmente esclarecedor para os que trabalham direta (policiais) e indiretamente (prefeituras, entidades comunitárias) com as questões da segurança em um momento em que a bipolaridade policial tende a se inclinar para as ‘heroicas’ ações táticas de letais operações, desvalorizando o papel crucial de prevenção da polícia territorial.”
Para ele, quando se opta pelas ações espetaculares e invasões de morros é deixado de lado o “amplo campo de desafios das ações integradas, com a exploração dos hotspots identificados”. “Quando se examina a gênese de cada hotspot, o por que se tornou polo de atração de infratores, percebe-se a importância da gestão do local dos crimes, onde ressalta o papel das prefeituras e das comunidades envolvidas.” Ou seja, em vez de prevenir o crime, a ação dos valentes homens de preto espera que ele aconteça e o fenômeno se estabeleça no território. E com os resultados de sempre: a expansão dos delitos e dos delinquentes.
Não só o coronel contesta essa política de Segurança. Ao optar por uma operação como a do Guarujá, Tarcísio forneceu munição aos deputados petistas e do PSOL da Assembleia, bem como a parlamentares, como a deputada Tabata Amaral (PSB-SP), que lamentou a morte do policial da Rota para, em seguida, criticar o que chamou de chacina. “O que aconteceu no Guarujá é grave: ao menos 10 mortes e denúncias de tortura! Precisamos de uma investigação robusta.”
Bahia
A polícia de São Paulo não foi a única a ter suas ações contestadas na semana passada. A da Bahia, Estado administrado pelo PT, registrou 1.464 pessoas mortas em intervenções policiais em 2022, ou 22,7% do total das 6.430 mortes provocadas por ações policiais no País, ocupando o primeiro lugar em números absolutos entre os Estados e o segundo lugar no ranking de acordo com a taxa de mortes por cem mil habitante. Aqui o silêncio é de Lula e de seu ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, ex-governador baiano.
Ao mesmo tempo que o PT pouco faz para conter a letalidade policial no principal Estado governado pela legenda, ele também aposta na militarização como resposta para a crise da Segurança Pública na Amazônia. No Planalto, Lula estuda a proposta do ministro José Múcio Monteiro Filho (Defesa) de expandir a área de atuação das Forças Armadas nas fronteiras para o combate ao crime transnacional. Os atuais 150 quilômetros, onde os militares têm poder de polícia, passariam para 250.
Flávio Dino (Justiça) defendeu a ideia. “O ministro Múcio defende essa tese. Ontem conversamos com o presidente da República. Vamos agora, provavelmente, debater esse tema. É uma forma de ampliar, na Amazônia, o papel subsidiário das Forças Armadas”, afirmou. Trata-se de música para os ouvidos da general Laura Richardson, do Comando Sul das Forças Armadas dos EUA. Em recente entrevista, ela elogiou a operação que empregou 23,5 mil militares colombianos em ação contra o crime na fronteira com o Panamá.
O problema é que esse é o tipo de proposta que desperta oposição nos petistas, como o ex-deputado José Genoino e o deputado federal Carlos Zarattini (SP). No fim de semana, foi a vez do ex-secretário nacional de Segurança Pública Luiz Eduardo Soares publicar uma carta aberta a Dino, contando seu desânimo com as notícias de mortes em ações policiais em São Paulo e no Rio, “supostamente em nome da Segurança Pública, supostamente em razão da chamada guerra às drogas”. “Não há categoria mais cínica e venal, mais repulsiva e estúpida.”
Soares prossegue, afirmando que “o encarceramento em massa está contratando violência futura e entregando força de trabalho jovem aos agenciadores do crime”. E continua: “O custo humano e material é tão gigantesco quanto irracional é esta dinâmica perversa”. Para, enfim, indagar: “É pedir demais que se cumpram as leis, que se admitam os limites legais? De que modo esse postulado confrontaria princípios liberais? Por que o legalismo contraditaria os princípios conservadores?”
Populismo penal
Na esteira do ex-secretário, Zarattini disse que a proposta de Dino e do governo de ampliar para até 40 anos a pena para quem atentar contra vida de ministros do STF ou outras autoridades não conta com a boa vontade da maioria da bancada petista na Câmara. Assim, o projeto de lei assinado por Lula que aumenta as penas para crimes cometidos contra o Estado Democrático de Direito deve ter vida difícil no Congresso.
Em vez de ampliar o uso das Forças Armadas na Segurança Pública, os petistas querem limitá-lo. Zarattini agora pensa em obrigar que os decretos de operações de Garantia da Lei e Ordem (GLO) sejam submetidos à aprovação do Congresso, a fim de aumentar o controle civil sobre o uso de militares nessas ações. As idas e vindas dos governos em busca de soluções para a Segurança provocam descompassos e perdas de vidas e recursos. A despeito das disputas, estudiosos e policiais aguardam a criação de políticas claras, coordenadas e eficientes. Pois, também nos governos, o bumbo deve bater no pé direito.
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