O discurso sobre a Cortina de Ferro, que Winston Churchill fez em Fulton, no Missouri, em 1946, é o símbolo do mundo polarizado da Guerra Fria. A visão de que a paz continuava a guerra e fazia da política um conflito por outros meios, no qual o consenso é impossível entre forças irreconciliáveis, estava exposta na visão de cada coalizão a respeito da democracia. Era o tempo de homens partidos, em que Carlos Drummond de Andrade declinava de toda responsabilidade na marcha do mundo capitalista.
Muitos na esquerda e na direita não viam a democracia como um valor universal. As divisões corroíam todos os campos. Época em que um comunista não podia ter um amigo que fosse da “canalha trotskista”; se o trotskista fosse parente, o comunista tinha de sair de casa. Questionado pelo partido sobre sua relação com Carlos Echenique, um intelectual trotskista que frequentava seu escritório, o arquiteto Oscar Niemeyer, então, respondeu: “Ah, não, ele é só canalha, não é trotskista. Podemos ter relações com ele.”
A boutade de Niemeyer faz lembrar a resposta de Luiz Henrique Mandetta ao então colega de Ministério, Onyx Lorenzoni, que insistia, em 2019, na despetização da administração pública – nome dado pelo governo anterior à abertura máxima de vagas para seus apadrinhados. “Não me interessa a cor do gato, contanto que cace o rato.” O princípio que deve guiar a administração da coisa pública é o da eficiência e não o do compadrio. É o da profissionalização da burocracia e do apartidarismo; e não o da amizade que só rejeita “trotskistas”.
Em 2020, o secretário-executivo da Casa Civil de Lorenzoni, Vicente Santini, resolveu usar um avião da FAB para viajar da Europa à Ìndia. Bolsonaro disse que a viagem exclusiva de jatinho do secretário era imoral. Demitiu-o. Mas como a desonestidade para o mandatário era algo de esquerda, logo arrumou outro cargo para o amigo de infância de seus filhos Eduardo e Flávio. Em um mundo polarizado, não se joga ao mar um combatente. No máximo, dá-se uma bronca, põe-se de castigo antes de o menino voltar ao convívio familiar.
No governo Bolsonaro, formou-se uma grande família. A dos Cid parecia estar em toda parte. O pai na Apex, em Miami, onde agora o chefe dos Bolsonaro está. O filho, no Planalto, tornou-se o faz-tudo de Michelle Bolsonaro e conselheiro do presidente em sua luta ideológica contra a esquerda. Há oficiais que mandam subordinados tomar ninhos de metralhadora em uma guerra. Outros enviam sargentos para reaver joias em Guarulhos... Estava só cumprindo ordens? De quem? Essa era a lógica das “operações especiais” no Planalto de Bolsonaro: qualquer missão, em qualquer lugar, a qualquer hora e de qualquer maneira.
Em 1973, o então ministro das Finanças francês, Valéry Giscard d’Estaing, recebeu e pôs na mala – apenas – dois diamantes do ditador Jean-Bédel Bokassa, da República Centro-Africana. Descoberto o escândalo pela imprensa quando d’Estaing ocupava a presidência do país, o caso lhe custaria a reeleição, em 1981, apesar de o presidente francês dizer que vendera as joias e doara o dinheiro à Cruz Vermelha. Pois nem mesmo isso Bolsonaro fez. O sire e sua madame tentaram reaver oito vezes o tesouro das arábias.
A empreitada começara com a recusa do almirante Bento, que tentara introduzir furtivamente em uma sacola a mercadoria no País, de declarar, oficialmente, à Receita Federal que as joias ofertadas pelo regime saudita eram propriedade do Estado brasileiro, como orientado pelos fiscais. Buscou-se com cargo, patente e gogó dar uma rasteira na alfândega, um passa-moleque em R$ 12,5 milhões de impostos e carteirada com a conversa fiada de que o presente iria para um acervo. Assim como a democracia é para Bolsonaro o regime em que ele vence as eleições, acervo parece significar aquilo que lhe pertence.
A lista de condutas típicas a serem analisadas no caso pela Procuradoria da República é grande. No País que se manteve polarizado após as eleições, Bolsonaro parece perder a cumplicidade do silêncio que lhe garantia tratar o Estado como coisa de família. E dos amigos, a quem também tudo se perdoava. O hábito é antigo em Brasília. E Lula o conhece bem. Tem diante de si uma conversa decisiva com o ministro das Comunicações, Juscelino Filho. O novo companheiro do petista é outro que alega ser vítima de denúncias infundadas da imprensa, diante das acusações de apropriação privada de recursos públicos.
A série de descobertas do Estadão se avoluma a cada dia. O ministro alegou urgência para usar aeronave da FAB e recebeu diárias para compromissos privados em São Paulo (ir a um leilão de cavalos de raça). Descoberto, devolveu a verba. Empregou no gabinete um consultor para compra de cavalos, escondeu o patrimônio de R$ 2,2 milhões da Justiça Eleitoral e usou dinheiro do orçamento secreto para asfaltar a estrada que levava a sua fazenda, no Maranhão. E isso é o que se sabe em apenas dois meses de governo. E ainda há quem pense que demitir Juscelino seria imolar um aliado para reviver o espírito do lavajatismo.
Indaga-se o que falta para o governo se decidir sobre o ministro. Desvio só interessa se é do outro? Por fim, descobriu-se que Juscelino recontratou bolsonaristas para cargos de confiança em sua Pasta, descumprindo ordem de Lula. Vale lembrar que Edmar Camata, o indicado por Flávio Dino (Justiça) para dirigir a Polícia Rodoviária Federal, teve de ser desconvidado porque defendera, no passado, a Lava Jato. Como ensinara Niemeyer, em tempos de política polarizada, perdoa-se tudo às pessoas, exceto as “relações com os trotskistas”. E, para alívio de Brasília, o trotskismo sempre representou uma minoria ínfima no mundo.
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