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As relações entre o Poder Civil e o poder Militar

Análise | Os voos de ‘Don Corleone’ para levar toneladas de cocaína do PCC e da máfia para a Europa

Alvo da Operação Mafiusi, ele usava os aviões do ‘Concierge do PCC’, que decolavam para Bélgica, Espanha e Inglaterra e foi achacado por policiais civis de São Paulo ligados ao delator Gritzbach

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Foto do author Marcelo Godoy
Atualização:

O empresário João Carlos Camisa Nova Júnior escolheu a dedo o codinome que usaria na rede de mensagens criptografadas do crime organizado: Don Corleone. Não era a primeira vez que o personagem criado por Mario Puzo e imortalizado por Marlon Brando inspirava um bandido da vida real. Um famoso contraventor paulista assistia a trilogia de Francis Ford Coppola sempre que precisava achar soluções para seus negócios reais.

O empresário João Carlos Camisa Nova Júnior, o Don Corleone: amigo de Willian Agati, o Concierge do PCC; na foto, uma cópia da investigação feita por Xixo e Bolsonaro Foto: Reprodução / Estadão

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Era 2020 quando pela primeira vez seu apelido na rede Sky ECC apareceu em uma investigação da Polícia Federal. Em 20 de outubro daquele ano, os federais localizaram um carregamento de 1.524 quilos de cocaína dentro de uma carga de milho no navio Unispirit, no porto de São Sebastião. De bandeira de Antígua e Barbuda, a embarcação tinha uma tripulação russa e zarpou, após a apreensão da droga, rumo à Espanha, onde as autoridades daquele país encontraram mais 1.200 quilos de cocaína.

Nascido em Marília (SP), em 1985 – hoje ele está com 40 anos – Don Corleone era então um dos sócios da empresa CBA Exportação de Alimentos Ltda e havia pessoalmente contratado três caminhoneiros para trazer de Mato Grosso o carregamento de milho que seria para a Espanha. Antes, enviara milho para a Antuérpia, na Bélgica.

Tudo documentado na Operação Calgary, da Polícia Federal, deflagrada em 18 de novembro de 2021, o que levou o então procurador da República Rodrigo De Grandis a denunciá-lo em 13 de junho de 2022 à 6.ª Vara Criminal Federal de São Paulo.

Ali começou também um outro tipo de registro: os voos do avião Dassault Aviation Falcon 50, prefixo PR-WYW. Ela acabaria apreendida em São Roque (SP), em 23 de março de 2022, em outra operação da PF, a Retis. Mas a história de seus voos teria de esperar mais dois anos de investigações e uma nova ação dos federais – a Operação Mafiusi – para ser contada.

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O avião Dassault Falcon 50 apreendido pelos federais em São Roque durante a Operação Retis; voos para a Europa transportando droga Foto: Polícia Federal

Foi por meio das mensagens achadas no servidor do sistema de mensagens criptografadas Sky ECC que os policiais encontraram as descrições das viagens de Don Corleone. Usado pelo crime organizado mundial, o Sky ECC armazenou cerca de 3 bilhões de mensagens de traficantes, contrabandistas e terroristas.

Seus arquivos estão nas mãos do FBI e da Europol e foram uma das bases da Operação Eureka, que permitiu ao Raggruppamento Operativo Speciale (ROS), dos Carabineiros italianos, desmantelar uma rede mundial de crimes da ‘Ndrangheta, a máfia da Calábria – Sul de Itália.

Durante a investigação da PF que levou à apreensão da cocaína no navio Unispirit surgiram outros dois personagens dessa história. Eles só seriam presos em 3 de setembro de 2024, abrindo a temporada de escândalos de corrupção que sacode a Segurança Pública de São Paulo: os investigadores do Departamento de Repressão ao Narcotráfico (Denarc) Valdemir Paulo de Almeida, o Xixo, e Valmir Pinheiro, o Bolsonaro.

Conversas do investigador Xixo transcritas pelos policiais da FICCO, da Polícia Federal, que levaram à decretação da prisão do policial Foto: Reprodução / Estadão

Na época em que federais tentavam enquadrar Don Corleone pelos embarques de cocaína para a Europa em navios graneleiros e suspeitavam dos voos da aeronave prefixo PR-WYW, os policiais civis depositaram sua atenção no Falcon 50, juntando fotografias do avião no aeroporto de Cascais, em Portugal. Também tentavam incriminá-lo por meio da descoberta de um laboratório de drogas em São Bernardo do Campo.

O que os federais não tinham era o “acesso privilegiado” às informações da cúpula da Sintonia do Tomate, o tráfico internacional de drogas do Primeiro Comando da Capital, com a qual se relacionava um dos parceiros de Don Corleone, o empresário Willian Barile Agati, o Concierge do PCC. É aí que as investigações começam a se cruzar, com seus personagens se entrelaçando em uma rede, que é a cena do crime organizado no País.

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Xixo e Bolsonaro não tinham essa dificuldade. Eles se relacionavam com o corretor de imóveis Antônio Vinicius Lopes Gritzbach. Este era amigo de traficantes como Anselmo Bechelli Santa Fausta, o Cara Preta, cuja morte em 2021 levaria a uma espiral de violência e ao acordo de delação de Gritzbach, bem como ao assassinato deste, no aeroporto de Guarulhos, em 8 de novembro de 2024.

Trecho da conversa entre Don Corleone (Camisa Nova) e Senna (Agati) sobre o pagamento de propina para policiais civis de São Paulo: 800 mil em TED Foto: Reprodução / Estadão

Foi justamente o pagamento de propina – foram identificadas duas parcelas, de R$ 200 mil e de R$ 300 mil – feitos por Camisa Nova, o Don Corleone, aos policiais que permitiu à PF encontrar uma das mais contundentes provas do ecossistema do crime no Brasil. É quando o megatraficante conversa com Agati, o verdadeiro dono do Falcon 50. As mensagens ficaram registradas no sistema Sky ECC, no qual o Concierge do PCC se identificava com os codinomes Senna e Boxeador.

Agati - Você combinou em pagar os caras quando?

Corleone -Manda os caras se f... Já receberam 800.

Agati - Vocês estão falando com o Xixo e Pinheiro?

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Corleone - Xixo e Pinheiro, os dois irmãos. Demos 800 mil. (...)Tudo em TED,

Agati - Em TED?

Corleone - Transparência, porra. Sério. (...) Falei só se for TED

Agati - Mano, nunca vi pagar madeira em TED. kkk você é foda.

Era tudo verdade. A Força Integrada de Combate ao Crime Organizado (FICCO), de São Paulo, chefiada pelo delegado Alexandre Custódio Neto, encontrou transações bancárias em nome de duas empresas. Ela registrou assim: “Comércio de Tecidos e Confecções Lousada e Speed Services Documentos & Locação de Veículos e Máquinas EIRELI, respectivamente emitente e beneficiária de tais transferências”.

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Ainda em 2024, o delegado Eduardo Verza, do Grupo de Investigações Sensíveis (GISE), da Polícia Federal do Paraná, estava concluindo os trabalhos para a deflagração da Operação Mafiusi, quando resolveu descrever os voos de Don Corleone e sua relação com Agati. Verza obteve por meio do delator Marco José de Oliveira as senhas e os codinomes usados por Agati no Sky ECC, o que lhe permitiu buscar na Itália as provas necessárias para desnudar o império de Concierge do PCC.

O empresário Willian Agati e Emerson Menezes, o Grilo do PCC, em um churrasco em um imóvel em Florianópolis: dupla é acusada de chefiar esquema bilionário de tráfico e de lavagem de dinheiro Foto: Reprodução / Estadão

O “vínculo” entre o codinome Senna e Camisa Nova, escreveu o delegado, ficou “comprovado a partir da análise das provas compartilhadas com autorização do douto juízo da 6.ª Vara Criminal Federal de São Paulo”. E quais informações eram essas? Eram as mensagens e provas sobre o uso do jato particular prefixo PR-WYW para transportar ao menos 1,5 tonelada de cocaína para Europa.

Em 4 de novembro de 2020, Agati teria enviado a imagem de uma conversa no Sky ECC nomeada como “Don Teflon”, no qual o usuário com o codinome Teflon diz que no começo de 2021 ia fazer um novo “trabalho” para o grupo. Don Teflon era como o mafioso John Gotti, antigo chefe da famiglia Gambino da máfia sículo-americana era chamado.

Ao ser questionado por um comparsa no chat que mantinham no Sky ECC sobre quem seria Teflon, Agati diz que se tratava do “Planner de Paranaguá” (PR), referindo-se ao responsável pelas atividades de planejamento e controle do processo logístico do Terminal de Contêineres do porto paranaense.

Trecho de conversa no aplicativo Sky ECC entre Senna 9Agati) e Corleone (Camisa Nova) sobre o pagamento do piloto que levaria a droga para a Europa durante a Operação Mafiusi Foto: Reprodução / Estadão

Os federais examinaram três viagens de Corleone no Falcon 50 para a Europa. Em uma delas estava acompanhado por André Roberto da Silva, outro alvo da Operação Calgary, e por Mansur Mohamed Bem Barka Heredia, investigado na Operação Descobrimento, deflagrada em 19 de abril de 2022 após um carregamento de 595 quilos de cocaína ser encontrado a bordo de um avião Falcon 900 que pousara em Salvador antes de partir para Portugal, em um esquema semelhante ao de Don Corleone e Agati.

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No chat mantido por Camisa Nova e seus amigos, Agati confirma que, em 16 de novembro de 2020, a aeronave carregada com a droga decolaria de Manaus, para onde a operação foi transferida em razão da impossibilidade de se usar o aeroporto do Recife. Don Corleone, então, comenta que o plano era o avião sair na madrugada, carregado com 1,2 mil quilos de cocaína.

Em seguida, disse que no Falcon 50 estariam ele, André Silva – o Urso, no Sky ECC –, além de três outros passageiros com apelidos curiosos: “Delegado Receita”, “Infraero” e “Anac”. Até agora, a PF não conseguiu confirmar se esses outros passageiros são realmente funcionários públicos ou apenas codinomes aleatórios. Era a saída 37 do esquema. Nela, Corleone seria responsável pelo voo, o que lhe permitiria incluir na carga de cocaína uma parte sua, que não entraria na divisão dos lucros com os outros integrantes da organização.

A ficha de Don Corleone no sistema prisional paulista: condenado a 32 anos de prisão, ele agora enfrenta novo processo em Curitiba Foto: Reprodução / Estadão

Argati e seu sócio Edmilson Menezes, o Grilo, também participavam da empreitada. A aeronave partiu naquele dia após muita discussão entre os investigados. “Os participantes chegaram a um consenso tanto sobre a quantidade de droga que cada um poderia enviar quanto sobre o valor que seria pago aos pilotos, ficando acertado que os pilotos receberiam US$ 800 por peça”, escreveu o delegado.

Em outro voo, os acusados saíram de São Luís em direção a Bruxelas. Corleone mandou mensagem ao amigo, que lhe parabenizou pela viagem. E sonhou mais alto. Quatro dias depois de voltar ao Brasil, ele contou um “gran finale” para o esquema com a aeronave PP-WYW: um voo com 1,5 tonelada de cocaína.

Não se tratava, porém, da sonhada aposentadoria do crime sonhada por Don Vito Corleone ou por Michael Corleone. Enriquecer e deixar os negócios em troca de uma vida respeitável para a família. Era apenas o início de uma nova fase. Os sonhos mais altos de Camisa Nova eram engajar uma nova aeronave, um Falcon 900, com a capacidade de levar de uma só vez até quatro toneladas de cocaína.

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Não deu. A Federal interrompeu seus planos, e o Don Corleone brasileiro acabou preso em 2021. Ele, Agati, Xixo, Bolsonaro e as defesas dos demais citados nessa coluna negaram as acusações em seus interrogatórios. Já condenado a 32 anos de prisão, Corleone terá agora de enfrentar outro processo, desta vez, na 23.ª Vara Federal de Curitiba ao lado de Agati e de outros oito acusados em razão dos voos para a Europa.

Análise por Marcelo Godoy

Repórter especial do Estadão e escritor. É autor do livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015). É jornalista formado pela Casper Líbero.

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