Como toda trama policial que envolve personagens conhecidos, o caso da vereadora Marielle Franco, eleita pelo PSOL para a Câmara dos Vereadores do Rio, parece ser desses que vai conviver por anos com dúvidas, teorias e pontos de difícil esclarecimento, que desafiam a lógica e a forma de como as coisas se passam no submundo onde vivem policiais corruptos, milicianos, contraventores e políticos. Nem mesmo as mais de 400 páginas do relatório final da Operação Murder Inc, da PF, são capazes de resolver todas as perguntas.
Era o dia 2 de outubro de 2023, quando o general Richard Nunes, futuro Chefe do Estado-Maior do Exército e peça fundamental para desarmar o golpe tramado, em 2022, por Jair Bolsonaro, tinha sob seu comando as tropas do Nordeste, foi à sede da Superintendência da Polícia Federal, no Rio, para depor. Primeiro, a PF quis saber como foi a decisão de escolher o delegado Rivaldo Barbosa para chefiar a Polícia Civil do Rio. Richard assumira a pasta da Segurança Pública carioca, logo após ser promovido a general de divisão – até então, ele comandava a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército.
A designação fora do então comandante do Exército: general Eduardo Villas Bôas. Vivia-se então os primeiros dias da intervenção federal na Segurança Pública do Rio, que fora colocada sob as ordens do comandante militar do Leste, general Walter Braga Netto, futuro candidato a vice na chapa de Jair Bolsonaro, em 2022. O relatório da PF trata com acidez o trabalho do Exército na Segurança Pública. Ali está o depoimento do general.
Disse então Richard à PF: “Que tomou posse como Secretário no dia 27 de fevereiro de 2018; QUE sua primeira missão enquanto Secretário era encontrar nomes para o comando da Polícia Civil e da Polícia Militar; QUE para ambos os cargos o depoente recebeu uma lista de cinco nomes oriunda da inteligência do Comando Militar do Leste; QUE tal lista não era vinculante e se tratava somente de uma sugestão de nomes que não tinham fatos que os desabonassem”.
O general mal conhecia o ambiente da polícia, embora tivesse comandado tropas durante a intervenção no Complexo da Maré, anos antes, no Rio. A ideia então do presidente Michel Temer (MDB) ao entregar a Segurança do Estado ao Exército era atender a um velho desejo dos cariocas: pôr ordem na casa, sacudida por organizações criminosas e operações infrutíferas das polícias, que deixam um rastro de mortes, mas não arranham as unhas do crime organizado com seus lucros milionários. O general segue explicando:
“QUE já em relação à Polícia Civil o depoente tinha como preferido o Delegado DELMIR, tendo em vista que este, outrossim, trabalhara com o depoente na ocasião da Força de Pacificação na Comunidade da Maré; QUE ia fazer tal escolha apesar do nome de DELMIR (Gouveia) não constar na lista encaminhada pela inteligência do CML, mas ele não aceitara o convite; QUE assim escolheu o nome de RIVALDO BARBOSA”.
A primeira pergunta ainda sem resposta é por que o nome de Barbosa constava da lista da Inteligência do CML? Richard afirma depois que a Subsecretaria de Inteligência, órgão da Secretaria de Segurança Pública do Rio, “contraindicou o nome de Rivaldo”. “Mas o depoente decidiu pelo seu nome, tendo em vista que tal contraindicação não se pautava em dados objetivos; QUE teve contato com RIVALDO na época da Força de Pacificação e depois acompanhou seu trabalho enquanto Chefe da DH, notadamente no Caso Amarildo”.
Para Richard, nem sempre os informes da inteligência são suficientes para afastar um agente público, pois no ambiente opaco da polícia, onde grupos se digladiam por poder – e também por dinheiro e privilégios –, é difícil separar o joio do trigo, os honestos dos coniventes ou dos bandidos. Às vezes, um policial trabalha ao lado de um colega por anos sem perceber que está sendo vendido pelo companheiro. Um secretário da Segurança Pública paulista uma vez disse a esta coluna que se fosse usar o critério da probidade não teria homens suficientes para preencher todos os cargos da polícia. Se dizia a verdade ou não, é outra história.
Surge aí a primeira crítica à presença de militares na Segurança Pública feita pela PF. Richard nega ter sofrido qualquer ingerência política na nomeação de Rivaldo. Em seu relatório, os delegados da PF escrevem: “O fato é que a passiva gestão dos militares à frente da Segurança Pública do Rio de Janeiro; sua falta de traquejo para manejar as vicissitudes do jogo de poder fluminense; sua vinculação a um Presidente da República do PMDB (Temer); bem como a manutenção da nomeação de Rivaldo mesmo após a contraindicação da Subsecretaria de Inteligência, são fatores indiciários do contrário.”
Enfim, prossegue o depoimento do general. No dia 14 de março de 2018, foi Rivaldo quem lhe disse que ia pôr o delegado Giniton Lages a frente da investigação do caso Marielle, pois ele fora indicado pelo chefe para a Delegacia de Homicídios. Rivaldo ainda contava com o aval do deputado federal Marcelo Freixo, então no PSOL. A partir de então, o general passou a manter reuniões com os delegados nas quais era atualizado sobre os desdobramentos das investigações. Quase no fim de sua gestão, Richard decidiu conceder uma entrevista para o Estadão, publicada no dia 14 de dezembro.
Richard recebeu a reportagem do jornal com afarda de general – faltavam poucos dias para ele deixar a secretaria e Richard deixara de lado o terno e a gravata que o acompanharam durante a intervenção. No meio do balanço de sua gestão na pasta, o general contou então que a morte de Marielle estava relacionada à grilagem de terras na zona oeste do Rio. Era a primeira vez que essa informação – que mais tarde ligaria a morte da vereadora aos irmãos Brazão – se tornava pública.
Richarda contara ao autor desta coluna o que sabia, o que lhe havia sido dito pelos delegados que apuravam o caso. Mas, estranhamente, Giniton não fez constar essa informação no relatório que entregou do caso. Ali, a morte de Marielle é caracterizada como “um delito de ódio” e não um assassinato ligado aos interesses imobiliários dos milicianos, que estariam sendo contrariados pela vereadora. Quando fez seu relatório em 2019, Giniton não era mais subordinado ao general, que deixara a secretaria no dia 31 de dezembro de 2018. Até depor na PF, o general não sabia de nada que desabonasse o antigo subordinado.
Os delegados federais demonstraram que o relacionamento entre Rivaldo e Giniton remontava a 2014, quando ambos estavam na Homicídios. Rivaldo propôs ainda que Giniton fosse promovido à delegado de 1ª Classe, mesmo ainda estando em meio à investigação de um caso. E alertou ao general sobre essa “anormalidade”, o que, segundo a PF, corrobora informação dada por Ronnie Lessa. Disse Richard à PF: “QUE tal alerta de RIVALDO se deveu à possibilidade de críticas de diversos setores acerca da promoção; QUE se o depoente negasse a promoção apresentada por RIVALDO, a massa policial entenderia a negativa”
E Richard, então, aprovou a promoção. O que levou os delegados da PF a concluir: “Deste modo, é possível inferir que a trama encabeçada por RIVALDO BARBOSA, desenvolvida com o fim de garantir a impunidade do crime e, como consequência, se desvencilhar das condutas criminosas por ele encetadas em conjunto com os autores mediatos, teve o condão de ludibriar, inclusive, um General quatro estrelas do Exército Brasileiro.” O juízo dos delegados federais é duro. Mas deixa, no entanto, outra pergunta no ar.
Afinal, por que Giniton resolveu prender os autores do crime – Ronnie Lessa e Élcio Queiroz –, se o objetivo de Rivaldo era despistar? A pressão da opinião pública seria suficiente para encarcerar os autores do homicídio, correndo o risco de mais tarde eles delatarem toda a trama, inclusive os mandantes? O ministro Alexandre de Moraes, homem habituado às invetsigações policiais e responsável pela decretação das prisões, certamente, gostaria de resolver esse mistério.
Normalmente, nestes casos, o crime organizado decide queimar o arquivo, que é o que teria ocorrido no caso de Edmilson da Silva Oliveira, o Macalé, outro envolvido na morte de Marielle. Afinal, por que os dois executores foram deixados vivos e presos por quem devia encobrir os mandantes? E Giniton sabia quem eles eram ou apenas se deixava usar pelo amigo, o delegado Rivaldo, ao mesmo tempo que encobria o que acreditava ser apenas falhas de seus subordinados, como na guarda de um celular apreendido, algo também comum na polícia? Enfim, as respostas a essas questões, talvez, mostrem porque Rivaldo está preso e Giniton aguarda a conclusão das investigações ainda em liberdade.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.