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As relações entre o Poder Civil e o poder Militar

Análise|Polícia Federal diz que ‘Contador de Lulinha’ movimentou R$ 525 milhões em 2 anos

Valores constam de inquérito que serviu para o Ministério Público incluir Muniz Leite como um dos alvos da Operação Fim da Linha, que atingiu empresas ligadas ao PCC; coluna não localizou a defesa dos investigados e defesa de Lulinha diz que investigações nunca atingiram filho do presidente

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Foto do author Marcelo Godoy

O contador João Muniz Leite, sua mulher, Aleksandra Silveira Andriani, e as empresas ligadas ao casal movimentaram R$ 525.778.863,00 entre 2020 e 2021, embora Muniz declarasse salário de R$ 26 mil no período. Essa é a conclusão do inquérito policial da Polícia Federal (PF) que o investigou e serviu de base para o Grupo de Atuação Especial e Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público de São Paulo, pedir à Justiça as ordens de busca feitas contra Muniz durante a Operação Fim da Linha.

João Muniz Leite, contador da família de Lula há mais de dez anos Foto: Reprodução / Facebook

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A coluna teve acesso à íntegra do inquérito. Deflagrada no dia 9 de abril, a Operação Fim da Linha mirou a captura de parte do sistema de transporte de São Paulo pelo Primeiro Comando da Capital (PCC). Ela atingiu as diretorias de duas empresas de ônibus: a UPBus e a Tranwolff, que teriam lavado dinheiro da facção obtido com o tráfico de drogas.

Muniz ficou conhecido como o Contador do Lulinha por ter trabalhado para Fábio Luís Lula da Silva, o Lulinha, filho do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a quem também prestou serviços. Muniz chegou a ser ouvido como testemunha durante a Operação Lava Jato no processo do caso do triplex do Guarujá, pelo então juiz Sérgio Moro.

De 11 de novembro de 2019 até 31 de julho de 2023, segundo dados da Junta Comercial de São Paulo, Lulinha manteve uma de suas empresas, a G4 Entretenimento e Tecnologia Digital Ltda, registrada no mesmo endereço do escritório de Muniz, na zona oeste da capital. A defesa de Lulinha diz que as investigações sobre o contador nunca atingiram o filho do presidente.

Os papéis da PF mostram que era 12 de maio de 2022 quando o delegado Flávio Vieitez Reis, supervisor do Grupo de Investigações Sensíveis da Superintendência da PF em São Paulo, enviou ao juiz Guilherme Eduardo Martins Kellner, da 1.ª Vara de Crimes Tributários, Organização Criminosa e Lavagem de Bens e Valores da Capital, os autos da investigação sobre a lavagem de dinheiro para que o caso fosse apreciado pela Força Tarefa X, do Gaeco.

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Documento da Polícia Federal sobre o envio do caso de Muniz ao Gaeco Foto: Reprodução / Estadão

Eram três os alvos citados na portaria que instaurou o inquérito n°. 020/2022: o Contador de Lulinha, Aleksandra Andriani e Mayra Marcílio Daher. O delegado explicava que o prêmio de R$ 40.076.100,78 do concurso 2.363 da Mega Sena foi o fato que deu origem à investigação. Isso porque um dos ganhadores do bolão vencedor foi o traficante de drogas Anselmo Becheli Santa Fausta, o Cara Preta – a aposta foi feita em uma casa lotérica em Pinheiros, na zona oeste. Cara Preta fora assassinado no dia 27 de dezembro de 2021, em uma emboscada na zona leste de São Paulo.

O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) detectou que pelo menos parte dos valores recebidos pelo traficante foram movimentados por empresas que tinham Mayra como responsável, sendo que o contador Muniz teria recebido as demais cotas do bolão. Muniz também era o contador de Cara Preta, que usava o nome falso de Eduardo Camargo de Oliveira, indícios que, segundo o delegado, demonstravam “que o bilhete muito provavelmente foi adquirido como forma de se ‘lavar’ valores obtidos ilicitamente por integrantes do PCC”.

O delegado suspeitava que Muniz estivesse por trás das empresas em nome de Mayra, para onde Cara Preta transferira os valores do prêmio de loteria – o contador ficara com 2 cotas do bolão e o traficante com 3. Os federais disseram que também acharam depósitos sem justificativa feitos por empresas do núcleo familiar de Muniz para casas lotéricas que somavam R$ 2 milhões e apostas feitas por Muniz e sua mulher que somavam R$ 2,5 milhões, a grande maioria em 2021, “o que pode indicar se tratar de um meio de lavagem de dinheiro”.

O traficante de drogas Anselmo Becheli Santa Fausta, o Cara Preta ou Magrelo, assassinado em 27 de dezembro de 2021 Foto: Reprodução / Estadão

Como não havia, em tese, crimes federais no caso – apurava-se o possível envolvimento de funcionários na Caixa, no esquema –, o delegado pediu o auxílio do Gaeco. O trabalho de apuração da PF havia começado em 20 de janeiro de 2022. Os promotores decidiram continuar a investigação dos fatos, no âmbito da força-tarefa, permanecendo o inquérito sob a responsabilidade da PF.

No meses seguintes, os federais descobriram que o traficante repassou parte de seus recursos a incorporadoras e construtoras que atuam no mercado imobiliário da capital – seis delas foram identificadas no inquérito da PF, uma das quais movimentou R$ 41 milhões. Ao mesmo tempo analisaram montantes de capitais que circularam entre as conta correntes de Cara Preta e as das empresas de Mayra, que, segundo os investigadores, tinham Muniz como contador – uma delas tem as iniciais do nome do contador, a JML Assessoria.

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As movimentações financeiras do casal

Após verificar todas as empresas que poderiam ter alguma ligação com o esquema investigado, o Coaf produziu o Relatório de Inteligência Financeira 70.897 analisando “228 comunicações suspeitas distintas”. “Estas operações financeiras comunicadas pelas instituições estão de forma direta ou indireta ligadas ao investigado em questão (o contador), porém, a soma geral dos valores de R$ 1.520.134.271,00 não pode ser toda creditado a Muniz Leite.”

Os analistas da Polícia Federal fizeram uma tabela para mostrar as movimentações feitas por Muniz, por sua mulher e pelas empresas ligadas ao casal Foto: Reprodução / Estadão

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A investigação concluiu assim que o Contador de Lulinha movimentara nos anos de 2020 e 2021 R$ 137.140.640,00, sendo que as operações de débito e de créditos somavam R$134.830.715,00 – R$76.468.961,00 de créditos e R$58.361.754,00 débitos. Já a mulher do contador teve movimentações totais de R$ 29.113.857,00. E isso apenas como pessoas físicas.

Ainda, segundo a PF, a movimentação financeira feita por meio das empresas do casal no período ficou em R$ 359.524.366,00. O total, portanto, entre as pessoas físicas e as jurídicas, chegou a R$ 525.778.863,00, embora Muniz declarasse salário de R$ 26 mil e tivesse um patrimônio de R$ 1,41 milhão.

Durante a apuração, os policiais afirmaram que acharam a “prática recorrente de depósitos e saques em espécie de valores fragmentados, gerando indícios de tentativa de acobertar o verdadeiro montante final da transação financeira”. É o que se lê no seguinte trecho escrito pelo delegado: “A recorrente prática destas condutas, corroboram com a tese já apresentada, que consiste na identificação de indícios de tentativa de burla ao sistema financeiro nacional, incorrendo na prática dos crimes ligados à lei de lavagem de capitais”.

Os prêmios das loterias

Trecho do inquérito da PF que trata das apostas premiadas de João Muniz Leite nas loterias Foto: Reprodução / Estadão

Em seguida, os policiais fizeram a análise dos prêmios de loteria recebidos pelo casal. “Há ao menos seis centenas de prêmios de sorteios lotéricos auferidos pelo casal Muniz e Aleksandra, ocorridos principalmente no ano de 2021″, contaram os policiais. Eles concluíram: “Há de se convir que este caso fortalece ainda mais a tese inicial de indícios da prática de crimes de lavagem de dinheiro por intermédio de prêmios de loteria”. Isso porque o casal, por vezes, apostava mais dinheiro do que recebia de retorno. Para os investigadores, essa seria uma das formas de lavar dinheiro, “pois há um retorno aparentemente ‘limpo’ com os valores dos prêmios recebidos”.

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De acordo com os federais, o casal sortudo ganhou 640 vezes na loteria – a mulher de Muniz acertou 462 vezes os números da Mega Sena, Lotofácil e Quina entre 18 de dezembro de 2020 e 25 de novembro de 2021. Já o marido foi o feliz ganhador de 178 prêmios, de 3 janeiro de 2019 a 17 de abril de 2021. O Coaf detectou ainda diversas transferências de empresas ligadas ao casal a casas lotéricas, o que “reforçaria a hipótese de que valores oriundos das empresas tenham sido utilizados para adquirirem bilhetes de loteria”.

O último item analisado pelos federais foram as movimentações financeiras das empresas que ligadas ao casal. O inquérito da PF afirmou: “É importante fazer constar que se tratam de várias empresas, no caso onze, as quais, em tese, funcionariam no mesmo local, o que levanta indícios de algumas delas serem ‘empresas de prateleira’, ou seja, não existam de fato e tenham sido constituídas com o único intuito de movimentar valores em contas bancárias e mesmo entre si, dificultando o rastreio da origem, sendo que, porém, tal fato só pode ser esclarecido com o afastamento de sigilo bancário e fiscal”.

Relações com outros investigados

Além de Cara Preta, surgiram os nomes de dois outros suspeitos de ligação com o crime organizado em transações com as empresas de Muniz. Um deles foi investigado na Operação Tempestade, que detectou em 2020 o primeiro banco do crime utilizado pelo PCC para lavagem de dinheiro do tráfico. No período entre 1º de julho de 2020 e 30 de junho de 2021, os analistas do Coaf acharam “pagamentos de títulos e boletos em nomes de terceiros sem aparente vínculos econômicos ou societários com o titular da comunicação (Muniz)”.

Agente da Receita Federal na garagem da empresa de ônibus UPBus, investigada na Operação Fim da Linha Foto: Receita Federal

Um dos favorecidos foi a empresa Ivanildo B J Comércio de Veículos – da qual Muniz é contador. A empresa pertence ao pai e sócio de Caio Bernasconi, que foi investigado em diversas operações da Polícia Federal, tendo sido apontado como o “braço direito” de Sérgio de Arruda Quintiliano Neto, o Minotauro, preso pela Polícia Federal em 2019 sob a acusação de ser um dos maiores traficantes do País.

Antes que a PF pudesse cumprir os mandados de busca e sequestro de bens pedidos à Justiça no caso, Muniz se tornou alvo de outra operação policial. Era a Operação Ataraxia, do Departamento Estadual de Investigações sobre Narcóticos (Denarc), da Polícia Civil, que atingiu a empresa de ônibus UPBus, da qual Cara Preta era acionista. O contador foi um dos alvos da ação.

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Diante disso, em 21 de junho de 2022, o delegado da PF informou à Justiça que estava desistindo das buscas e do sequestro de bens dos acusados. Pediu ainda que o inquérito fosse enviado incluído no inquérito da Polícia Civil. Muniz foi ouvido nessa investigação no fim de 2022. Negou todas as acusações. Confirmou, no entanto, ter trabalhado para Santa Fausta, mas disse não saber que ele era traficante, pois ele se apresentava com nome falso.

A coluna procurou a defesa de Muniz, de Aleksandra e de Mayra, mas não conseguiu localizá-la. Também não conseguiu localizar as defesas de Bernasconi e Minotauro. A Polícia Civil deve concluir nos próximos dias o inquérito sobre Muniz. Alvo da Operação Fim da Linha, o contador não foi denunciado. A Justiça chegou a questionar a ausência do nome de Muniz do rol de acusados. O Gaeco tinha um motivo. É que os promotores, assim como a Polícia Civil, ainda apuram o tamanho de sua participação no caso.

Análise por Marcelo Godoy

Repórter especial do Estadão e escritor. É autor do livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015). É jornalista formado pela Casper Líbero.

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