Caro leitor,
Quem acredita que as ameaças contra o sistema eleitoral feitas por Jair Bolsonaro e pelo pré-candidato a vice-presidente, Walter Braga Netto, são a preparação de um golpe inevitavelmente vitorioso devia se debruçar sobre o destino do major João Paulo da Costa Araújo, do 2.º Batalhão de Engenharia de Construção (2.º BEC), em Teresina. Militar da ativa e pré-candidato a deputado federal, ele foi preso preventivamente em 5 de maio. O silêncio do presidente sobre o caso mostra os limites da saliva e da caneta do ocupante do Planalto.
Costa Araújo continua na cadeia – a Justiça Militar negou-lhe até mesmo a menagem, o direito de o militar ficar solto dentro do quartel – porque desobedeceu seus superiores e se manteve em campanha eleitoral, utilizando suas redes sociais ostensivamente para fazer propaganda político-partidária. O major não deixa dúvidas ao se definir como “cristão, militar, direita, bolsonarista e olavista”.
A coluna analisou 411 publicações que o militar fez em seu canal no YouTube e suas contas no Instagram e no Twitter. Localizou 258 manifestações bolsonaristas e político-partidárias. Ele se dizia candidato pelo PL. Participava de manifestações em Brasília e abraçava o blogueiro Allan dos Santos. Fazia propaganda de Bolsonaro. Valia-se de sua imagem de militar para pregações contra a imprensa e partidos de oposição. Em 31 de março de 2021, publicou: “Em 1964 detivemos o comunismo, mas os mesmos marginais daquela época têm atormentado o País nos últimos 30 anos. Vamos mandar essa cambada embora novamente”.
A pregação golpista lhe valeu uma punição disciplinar. Mas ela não conteve o militar. Seguindo o exemplo do então general da ativa Eduardo Pazuello, o major compareceu a ato político promovido pelo bolsonarismo em 7 de setembro de 2021. Pugnou pela expulsão de ministros do STF e pôs em dúvida as urnas eletrônicas. Defendeu a cloroquina e a ivermectina e divulgou informações falsas sobre as vacinas.
Em 24 de novembro de 2021, compartilhou imagem em que os ministros do Supremo Alexandre Moraes, Luiz Roberto Barroso, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes são retratados com o bigode de Adolf Hitler. A radicalização se concluíra. O major já era alvo de três apurações disciplinares. Dois anos antes, eram raras as manifestações políticas. Predominavam em suas redes cenas militares e fotos e vídeos de família.
Em 21 de março, a 10.ª Região Militar recebeu a Recomendação 2/2022 da Procuradoria de Justiça Militar no Ceará. O documento tratava de atividade político-partidária, elegibilidade e crimes em razão da violação da Constituição. Orientava os militares da ativa sobre como agir no ano eleitoral. No dia 28, o general André Luiz Ribeiro Campos Allão, comandante da região, determinou que a recomendação fosse lida em todas as unidades. A cadeia hierárquica começava a funcionar.
Um dia depois, o comando do 2.º BEC, onde o major servia desde 22 de fevereiro, promoveu, em formatura, a leitura do documento na presença de todos os oficiais, subtenentes e sargentos da unidade. Também publicou o documento em Boletim Interno. O Blog do Fausto trouxe a decisão do juiz Rodolfo Rosa Telles Menezes, da 10.ª Circunscrição Judiciária Militar, que deixa claro a razão pela qual o major foi parar na cadeia:
“Contudo, após devidamente orientado, o Major Costa Araújo não suprimiu as postagens de cunho político-partidário existentes das suas redes sociais (Instagram e Twitter) e ainda continuou publicando posts e vídeos de cunho político, afrontando sobremaneira as ordens superiores e dilatando danos à hierarquia e disciplina militares”. Só no Twitter, o oficial fez mais 25 postagens até ser preso em 5 de maio. Todas – exceto uma – bolsonaristas. Repetiu a mesma pregação golpista em 31 de março e desafiou os superiores a puni-lo de novo.
E o desafio foi aceito. A 10.ª Região Militar abriu em 5 de abril um IPM no 25.º Batalhão de Caçadores (Teresina), sob a presidência do tenente-coronel Suéldes Matias Silveira. O juiz explica por quê: “Em razão da recusa de obediência a ordem do superior hierárquico, bem como de dever imposto pelo Regulamento Disciplinar do Exército”. Nenhum tuíte de Bolsonaro protegeu o major. O comando pediu sua prisão, alegando ela ser necessária à garantia da ordem pública e à “manutenção das normas ou princípios de hierarquia e disciplina militares, ameaçados ou atingidos com a liberdade do acusado”.
O major buliu com a baderna. E bateu de frente com o Estabelecimento Militar. Disse o juiz: “A materialidade está consubstanciada através da vasta documentação acostada aos autos, referente a postagens em redes sociais de fotos e vídeos do Major Costa Araújo asseverando o seu posicionamento político, bem como apresentando-se como pré-candidato ao cargo de deputado federal, ocasião em que se observa atos relacionados a uma pré-campanha eleitoral”.
Dois majores foram ouvidos como testemunhas. Carlos Humberto Lopes Gualter Filho asseverou que o colega estava presente na formatura em que foi lida a ordem e Sérvio Alcântara Neves contou que a ordem era encaminhar ao Ministério Público Militar o nome de todo militar da ativa e “as demais informações”, caso se verificasse atividade político-partidária em desacordo com a legislação vigente”. Anexaram ao inquérito sete dos vídeos publicados por Costa Araújo, um dos quais com uma camiseta com a foto do presidente.
Concluiu o juiz: “Saliente-se que o indiciado ocupa o posto de Oficial Superior, o que causa um agravamento no seu comportamento, pois as suas condutas representam um enorme desrespeito à hierarquia e disciplina, quando, em verdade, deveriam representar um exemplo para toda a tropa”. Em 6 de maio, o juiz, diante dos antecedentes do major, negou-lhe a menagem.
Além do tenente-coronel Suéldes e do general Allão, a cadeia de comando do major tem o comandante militar do Nordeste, o general Richard Nunes, que ajudou a disciplinar o uso de redes sociais pelos militares durante o comando do general Edson Pujol. No Exército, o preso é visto como oficial “complicado”. Dizem que foi punido não só pela atuação política, mas pelo “conjunto da obra”. Ao se apresentar publicamente como representante dos militares, o major apropriou-se de papel que é da cadeia hierárquica e do Ministério da Defesa, agindo de forma desleal com seus superiores. Acabou enquadrado.
Muita gente ressabiada com a ação das Forças Armadas não prestou ou não quis prestar atenção ao caso. Mas é possível ignorar o fato de um oficial superior ter ido parar na cadeia por fazer campanha política para Bolsonaro no quartel? O documento da Justiça traz dados importantes para quem acredita que são favas contadas as manobras dos generais do Planalto e de Bolsonaro para a manutenção do poder. A questão é que o capitão pode se tornar descartável para os interesses do Estabelecimento Militar.
Uns vão dizer que, mesmo os golpes, são feitos dentro da hierarquia; outros que o major é bode expiatório: paga pelas culpas de um Pazuello sem direito à liberdade ou à esperança de contar com o presidente que tanto elogiou. Transformar o major em Daniel Silveira fardado seria pôr o Exército no lugar do Supremo. Há muita gente na Força Terrestre desanimada com o radicalismo do governo, que pode entregar o País a Lula da Silva. Gente disposta a cuidar dos afazeres na caserna, longe do alvoroço das ruas. O major terá tempo para refletir sobre sua punição exemplar. Um exemplo que, como se diz na caserna, arrasta.
P.S.: Ao apoiar o “chefe” Bolsonaro e a auditoria nas urnas eletrônicas em entrevista ao jornal O Povo, o almirante Almir Garnier dos Santos, comandante da Marinha, não teria feito nada mais do que defender o próprio emprego. É o que afirmaram à coluna dois oficiais generais. Não esperavam outra coisa de quem disse ser “normal” fazer desfilar carros de combate pela Esplanada no dia da votação da PEC do Voto Impresso, no Congresso. Garnier concorreria a uma vaga no ministério de um segundo mandato do chefe.
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