Caro leitor,
a solução da crise deflagrada pela reação do ex-deputado Roberto Jefferson à prisão contrariou delegados da Polícia Federal e descumpriu a doutrina de gestão de crises da PF e de outras polícias do País. Um dos pontos criticados pelos policiais ouvidos pela coluna foi o envolvimento do ministro da Justiça, o delegado Anderson Torres, na negociação da rendição de Jefferson, após ele lançar duas granadas e disparar contra os agentes, ferindo o delegado Marcelo Vilella e a policial Karina Lino Miranda de Oliveira.
A coluna ouviu um ex-diretor-geral da PF, delegados e oficiais da PM que foram unânimes em afirmar que o ministro não poderia se expor. No máximo, deveria ficar na sala de situação para acompanhar o caso. Mas não foi isso que o presidente Jair Bolsonaro determinou ao ministro. Ele disse que o enviou ao Rio para obter a rendição do aliado – Torres fez a negociação por telefone. Mais tarde, Bolsonaro anunciou o desfecho: “Como determinei ao ministro da Justiça, Anderson Torres, Roberto Jefferson acaba de ser preso”.
Ou seja: o presidente teria cometido erro semelhante ao do governador Geraldo Alckmin, que aceitou negociar com o sequestrador Fernando Dutra Pinto, que mantinha o empresário Silvio Santos como refém em sua casa, em 2001. Primeiro, porque não se deve expor a autoridade a risco desnecessário diante de alguém que se mostrou violento. Depois, porque não é ela a pessoa correta para negociar com alguém cercado. Por fim, o ato seria interpretado – e foi – como um privilégio concedido ao ex-deputado, algo inaceitável em uma República.
De fato, o Manual de Gerenciamento de Incidente Crítico, do Ministério da Justiça, classifica a situação vivida por Jefferson como a de uma “pessoa que se encontra em local confinado por ter praticado um ato ilícito anteriormente e se recusa a obedecer às ordens das autoridades competentes”. Ele é classificado no manual como “indivíduo homiziado” (foragido ou resistente à ação da Justiça). Nesse caso, o protocolo diz que “a força policial envolvida na ocorrência deve estabelecer perímetros, cercar e conter o causador do evento crítico e insistir na negociação”.
De acordo com o documento, o assalto tático ao ponto crítico não se apresenta como uma “boa prática técnica”, salvo se for identificado que a vida de um refém está em iminente risco. Para tanto, a Superintendência da PF no Rio tem uma equipe especializada nesse tipo de situação, assim como o Comando de Operações Táticas (COT) da instituição. Pelo disposto no manual, deve-se estabelecer um contato com o “indivíduo homiziado” em Levy Gasparian (RJ) e começar uma negociação.
A ideia é permitir que o tempo passe. Um delegado afirmou que outro erro foi permitir a entrada de pessoas na casa – padre Kelmon e outros apoiadores de Jefferson entraram no imóvel –, que não foi isolada. Isso porque alguém que já atirou em direção de policiais pode muito bem colocar em risco a vida de quem quer que seja ou fazendo-a de refém ou alvejando-a. Além da ameaça à segurança de outras pessoas, a falta de isolamento do local também prejudicou a realização da perícia do caso. Um circo foi criado nas cercanias da casa e quem quis pôde dar ali o seu espetáculo ou agredir jornalista sem ser incomodado pela polícia.
Para forçar a rendição do homem, afirmou um outro delegado, pode-se cortar a água e a luz. É preciso ter paciência dentro do “princípio de preservar vidas e de aplicar a lei”. Como o indivíduo em questão era conhecido, era possível aos policiais saber o grau de risco da operação. A PF optou por estabelecer contato com Jefferson por meio de um agente. Um vídeo mostra parte dessa conversa na qual o policial procura acalmar o ex-deputado e concorda com tudo o que ele diz. Chega mesmo a fazer chacota dos colegas que foram prender Jefferson mais cedo ao dizer que eles eram burocratas.
O desconforto de policiais com o vídeo foi enorme. O agente da PF parecia justificar a ação do ex-deputado. Seria mesmo só uma técnica de negociação, um modo de tornar a prisão mais doce? Mas isso só ocorreu horas depois. Jefferson, que é advogado, nega na conversa que tenha atirado em direção aos policiais, mas confessa ter lançado duas granadas – que disse serem de efeito moral – e ter atirado na viatura da PF. O objetivo é claro: descaracterizar o dolo da tentativa de homicídio, confessando a intenção de provocar o dano ao patrimônio público e de resistir à prisão, crimes com penas menores. Jefferson afirma que esteve com um dos policiais em sua mira três vezes para demonstrar que sua disposição não era homicida.
Além dos erros na condução da prisão e na negociação da crise, outros dois pontos foram apontados pelos policiais: delegados e agentes sentiram-se abandonados pelo governo e seus aliados, que nas primeiras horas pareciam tentar justificar o ato de Jefferson como uma resposta às ações do ministro Alexandre de Moraes, do STF. Delegados disseram que a falta de solidariedade com os companheiros feridos no episódio jogou boa parte da corporação contra Bolsonaro. E repetiam: quem atira em policial é bandido. Foi isso que o presidente tentou remediar quando divulgou vídeo no qual chamou Jefferson de “bandido”.
Antes desse episódio, a PF já era uma das instituições policiais menos penetradas pelo bolsonarismo. Pesquisa feita pelo Fórum Brasileiro da Segurança Pública mostrou que só 17% dos delegados e agentes federais interagiam em ambientes bolsonaristas na internet. Esse número subia para 48% em relação aos policiais militares. Havia ainda na instituição ressentimento por causa do tratamento privilegiado dado pela gestão Bolsonaro à Polícia Rodoviária Federal, aumentando suas competências.
Agora, como um delegado desabafou, sente-se que o governo perdeu o respeito pela PF. Já no final da tarde, o presidente da Federação Nacional dos Policiais Federais, Marcus Firme dos Reis, divulgava nota em que dizia: “A Federação Nacional dos Policiais Federais cobrará das autoridades competentes a rigorosa apuração dos fatos até a efetiva responsabilização criminal do autor pelas múltiplas tentativas de homicídio praticadas contra os integrantes da equipe no exercício da função policial”.
Esse enredo todo fez com que alguns imaginassem que tudo o que se passou no domingo era uma “coisa de louco”. Como alguém que se diz do partido da ordem pode atacar policiais que estão cumprindo o seu dever? Raul Hilberg, o grande historiador do Holocausto, escreveu: “Vocês não ficariam mais felizes se eu pudesse mostrar que todos os que perpetraram eram loucos?”. Zygmunt Bauman em Modernidade e Holocausto, diz que foi exatamente isso que Hilberg não pôde mostrar em sua obra.
“Se indagarmos agora que pecado original permitiu que isso acontecesse, o colapso (ou não emergência) da democracia parece ser a resposta mais convincente. Na ausência da autoridade tradicional, os controles e contrapesos capazes de manter o corpo político longe dos extremismos só podem ser fornecidos pela democracia política”, concluiu Bauman. Eis aqui uma explicação para aqueles que no domingo só enxergaram loucura no ato praticado por Jefferson.
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