MEC recua e suspende regra de internet em escolas que só Musk poderia atender

Decisão foi tomada após ‘Estadão’ revelar que portaria publicada pelo ministério de Camilo Santana limitava a concorrência na oferta de internet para escolas em regiões remotas e abria caminho para a Starlink no programa de conexão de escolas anunciado por Lula

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Foto do author Vinícius Valfré
Atualização:

BRASÍLIA - O ministro da Educação, Camilo Santana, suspendeu trechos de uma portaria que estabeleceu novos parâmetros de velocidade de internet para escolas públicas que superam os padrões internacionais. A decisão foi tomada após o Estadão revelar que a nova regra só era atendida, no mercado de satélites, pela Satarlink, do empresário Elon Musk.

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O recuo foi anunciado pelo ministro em uma publicação no X, antigo Twitter. Segundo Camilo Santana, os critérios serão reavaliados pelo grupo criado no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para discutir o plano de conectar todas as 138 mil escolas públicas.

“Determinei a suspensão imediata dos dispositivos da Portaria nº 33, de 7 de agosto de 2023, da Secretaria de Educação Básica (SEB/MEC), referentes aos critérios técnicos de velocidade, para fins de reavaliação dos seus termos pelo Comitê Executivo da Enec (Estratégia Nacional de Escolas Conectadas)”, escreveu.

Como revelou o Estadão, os parâmetros do MEC restringiam o mercado de internet satélite a Elon Musk e não eram atendidos nem pelo programa de conectividade de escolas da Telebrás, a estatal de telecomunicações. O artigo 11 da Nova Lei de Licitações, prevê que o processo licitatório precisa “assegurar tratamento isonômico entre os licitantes, bem como a justa competição”.

Há duas semanas, o MEC defendeu a mudança no parâmetro de velocidade que estabeleceu 50 MBPS de patamar mínimo de velocidade independentemente do número de alunos. O País tem 23 mil escolas com menos de 50 alunos. Em nota ao Estadão, dizia seguir o recomendado pelo GAPE (Grupo de Acompanhamento do Custeio à Projetos de Conectividade de Escolas). O GAPE, vinculado à Anatel, afirmara que “a medida era baseada numa análise da necessidade das escolas, levando em consideração estudos do MEC”.

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Após a reportagem do Estadão, o ministro mudou o discurso. Afirma agora que sua pasta defende “o cumprimento rigoroso das normas de competitividade e a adequação dos critérios técnicos de conectividade para o desenvolvimento das atividades pedagógicas nas escolas brasileiras”. Registrou ainda “o compromisso do Ministério da Educação com a transparência e lisura dos seus processos”.

O presidente Lula, o empresário Elon Musk e o ministro da Educação, Camilo Santana Foto: Wilton Junior (Estadão), @jairbolsonaro via X e JF Diorio (Estadão)

Após a reportagem, Camilo Santana foi criticado nas redes sociais, principalmente por grupos de esquerda e de apoiadores do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O ministro já havia sido alvo de reclamações depois de o Estadão revelar que toda a política de conectividade de escolas do MEC é influenciada por uma única ONG, a MegaEdu, financiada pela Fundação Lemann, do bilionário Jorge Paulo Lemann.

A Starlink chegou ao Brasil pelas mãos de Jair Bolsonaro (PL). Em maio do ano passado, o então presidente Jair Bolsonaro recebeu Musk em uma cerimônia no interior de São Paulo. O sul-africano cobiça os bilhões de clientes em potencial de grandes países, como Rússia, China e Índia, que até o momento não autorizaram sua operação. Só o Brasil ofereceu “tapete vermelho” ao empresário.

Elon Musk e Bolsonaro se encontram em São Paulo e tratam de conexão na Amazônia Foto: Reprodução/Twitter/Jair Bolsonaro

MEC impôs velocidade maior que Estados Unidos

Desde a portaria publicada em agosto, o Ministério da Educação exige 50 megabits por segundo (mbps) de velocidade mínima para cada escola. O índice é superior aos padrões praticados nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, como no Reino Unido. Também está acima da meta das Nações Unidas para todas as escolas do mundo até 2030. A portaria foi assinada pela secretária de Educação Básica.

A conexão via satélite, ramo de atuação da empresa de Musk, é uma das opções mais comuns para levar internet a regiões remotas do Brasil, sem infraestrutura de fibra óptica – tecnologia comum nos grandes centros urbanos e ausente em áreas onde estão 40 mil escolas. Essas unidades de ensino tornaram-se prioridade do governo, no lançamento do programa Estratégia Nacional de Escolas Conectadas (Enec), em 26 de setembro. A maioria das escolas fica nas regiões Nordeste e Norte, inclusive na Floresta Amazônica.

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Das 138 mil escolas públicas do Brasil, 40 mil ficam fora da área de cobertura de fibra óptica, em regiões mais remotas e sem infraestrutura. Portanto, são mais propícias a serem conectadas via satélite. Além disso, 23 mil delas são pequenos estabelecimentos, com menos de 50 alunos. É principalmente neste universo de escolas menores e em áreas sem infraestrutura que os satélites de Musk poderão pavimentar um domínio sobre outras empresas, uma vez que só a Starlink detém a velocidade que passou a ser exigida pelo MEC.

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Concorrentes de Musk que atuam no Brasil consideram que a regra dos 50 mbps restringe o mercado. As empresas apontam que há milhares de escolas com menos de 50 alunos que poderiam ser atendidas com internet de qualidade se fossem estabelecidas outras regras, como a recomendada por entidades técnicas brasileiras.

A conectividade das escolas públicas tem sido tratada por Lula como uma das políticas mais importantes de seu governo. Em outra frente, o Ministério das Comunicações, de Juscelino Filho, prepara uma licitação para contratar até 28 mil pontos de internet por satélite para escolas públicas e praças.

Um dos lotes prevê que as empresas devem ofertar uma velocidade mínima de 60 mbps para baixar dados (download) e 10 mbps para transmitir as informações (upload) ao levarem conectividade para praças. O parâmetro mínimo de upload é considerado excludente por empresas de internet por satélite que atuam no Brasil. As concorrentes apontam os equipamentos de Musk como os únicos capazes de entregar o serviço.

Na semana passada, o diretor do Departamento de Investimento e Inovação do Ministério das Comunicações, Pedro Lucas da Cruz Pereira Araújo, foi questionado sobre o tema em audiência pública na Câmara. O deputado Aureo Ribeiro (Solidariedade-RJ) perguntou a Araújo se a pasta tinha ciência que os critérios de um dos lotes da licitação favoreciam os satélites de Musk.

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O diretor do Ministério das Comunicações declarou que o processo licitatório estava em fase de consulta pública e o propósito era “avaliar a possibilidade de atendimento e mapear o mercado disponível, as potenciais ofertas disponíveis”. A consulta pública da pasta foi questionada por empresas que atuam no País com internet satélite.

Universalizar a conexão com a internet em escolas tornou-se prioridade global após a pandemia, com investimentos pesados dos diferentes governos. A União Europeia tem fundos bilionários que podem ser usados pelos países-membros para digitalizar escolas. Um deles tem um orçamento de € 44,5 bilhões (R$ 270 bilhões). Em 2022, o governo britânico anunciou uma política de £ 150 milhões (R$ 921 milhões) para ajudar escolas a atualizarem sua tecnologia. No Brasil, o plano é aplicar R$ 6,5 bilhões para criar pontos de internet ou melhorar a qualidade da conexão de todas as escolas públicas do País.

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